MAM-SP evidencia relação de Ismael Nery e Murilo Mendes

Exposição em São Paulo sobre trajetória artística de Ismael Nery resgata potência da amizade do pintor com o poeta juiz-forano Murilo Mendes, mostrando como os dois se influenciaram e ajudaram a escrever relevante capítulo da arte brasileira recente


Por Mauro Morais

29/07/2018 às 07h00- Atualizada 30/08/2018 às 16h37

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Exposição no MAM paulista reúne seis das sete obras de Ismael Nery pertencentes ao acervo de Murilo Mendes em Juiz de Fora (Foto: Divulgação)

Ismael Nery estava internado num sanatório em Corrêas, distrito de Petrópolis, na região serrana do Rio de Janeiro, vitimado pela tuberculose, e mesmo assim não parava de desenhar. Os trabalhos, contudo, relevam-no em diferentes fragilidades, e ele acabava por amassar e descartar tudo. O amigo Murilo Mendes, entre a generosidade e a consciência de posteridade, combinou com as cuidadoras do lugar que resgatassem os papeis do lixo e os guardassem. Após a morte de Ismael, aos 33 anos, em 1934, o poeta juiz-forano reuniu seus escritos e telas e tratou logo de dar a visibilidade que acreditava merecedora. Em “Ismael Nery: feminino e masculino”, exposição em cartaz até o dia 11 de agosto no Museu de Arte Moderna de São Paulo, no Parque Ibirapuera, a amizade tem lugar de destaque. Um não existiria plenamente sem o outro.

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Retrato de Ismael com Murilo registra amizade que transcendeu as artes e eternizou-se nela (Foto: Divulgação)

“Murilo Mendes sempre foi um cidadão do mundo, alguém que conheceu muitos artistas. Ele, por mais incrível que pareça, foi quem projetou, na Itália, o (Alberto) Magnelli. Aqui em Juiz de Fora temos uma coleção imensa do Magnelli, que o Murilo recebeu por ter divulgado o trabalho dele. O Murilo Mendes marcou muitos nomes internacionais, artistas da contemporaneidade, dentre eles o Ismael, um amigo que deixou um legado e também recebeu o legado do convívio com o poeta. É uma amizade tão profunda que essa convivência enriqueceu a cultura brasileira, pela busca poética, filosófica, religiosa, na sabedoria suprema da realização humana”, comenta a pesquisadora Marisa Timponi, que em parceria com a também pesquisadora Leila Barbosa lançou “Ismael Nery e Murilo Mendes: reflexos” (UFJF/MAMM), indicado ao Prêmio Jabuti.

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A publicação juiz-forana, editada em 2009, é um dos materiais que compõem a mostra que reverencia a trajetória de Ismael Nery. Além dela, seis obras do acervo do Museu de Arte Murilo Mendes — um óleo sobre tela, uma aquarela e quatro desenhos resgatados no sanatório petropolitano — integram a retrospectiva sob curadoria do experiente crítico de arte Paulo Sérgio Duarte. Da pinacoteca local, apenas o croqui para a capa do livro “Poemas”, de Murilo Mendes, feito em nanquim em 1930 não viajou a São Paulo. Um dos trabalhos mais aclamados da coleção de Murilo, a aquarela “Enseada de Botafogo”, está em “Ismael Nery: feminino e masculino”. Segundo Marisa Timponi, “é um quadro em que vemos um poema do Murilo em imagens. É muito forte a contaminação artística entre os dois.”

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O cometa, a dança e o amigo

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“Enseada de Botafogo”, aquarela de 1928, pertencente ao Museu de Arte Murilo Mendes (Foto: Divulgação)

Em “Saudação a Ismael Nery”, presente em “Poemas”, primeiro livro de Murilo Mendes, publicado em 1930, em Juiz de Fora, pela Dias Cardoso, o poeta se refere ao amigo como um “ente magnético (que) sopra o espírito da vida”. E o magnetismo era tanto que o encontro mostrou-se mais, muito mais que uma congregação. “Nesse poema ele aborda a relação da amizade, e, nessa ligação dele com o outro, nasce o que chamamos de ‘philia aristotelica’, que seria aquela intrínseca, intimamente ligada à virtude e à felicidade. A verdadeira forma da amizade, então, só é possível com o senso de justiça e equidade entre amigos. Essa ‘philia’ vai ser assinalada pelo Murilo quando ele comenta o encontro que teve com o Ismael Nery, em 1921, como um dos três fatos relevantes de sua existência. Além de ele ter encontrado o Ismael, em 1910 viu o cometa Halley passar e, em 1916, viu a dança do Nijinski no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Para Aristóteles, o amigo é um outro eu, e essa possibilidade de autoconhecimento, da plenitude humana, o Murilo viu em sua relação com o Ismael Nery”, observa Marisa Timponi.

Quando Ismael Nery se despede, a perda do amigo gera um impacto superlativo em Murilo Mendes, pontua Leila Barbosa. “Quem descreve isso brilhantemente é o nosso conterrâneo Pedro Nava, que diz da loucura do poeta no velório do amigo. Vários autores afirmam que isso fez a conversão do Murilo, mas nós temos outro enfoque sobre isso. Achamos que o Murilo não se converteu, mas voltou-se mais para a religiosidade, porque nunca deixou de ser católico, e isso era uma das coisas que mais admirava no Ismael. Ele considerava o pintor um ser completo”, defende Leila, precedida por Marisa em sua leitura de uma espécie de poema-unção que Murilo escreve para Ismael: “Não é do homem que recebes a glória, o Verbo te criou desde o princípio para transmitires palavras de vida e para que O mostrasses a outros homens”.

‘Eu sou o marido e a mulher’

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“Figuras”, guache e nanquim sobre papel, sem data (Foto: Divulgação)

O aspecto religioso, bastante presente na exposição “Ismael Nery: feminino e masculino” é, segundo Leila Barbosa, um dos principais eixos da amizade entre Murilo e Ismael. “O Ismael era marxista, um cara que seria ateu, mas era extremamente religioso. E essa religiosidade, o Murilo nomeou por essencialismo: o importante era a essência, que estava no centro, e as coisas secundárias, as aparências, não eram relevantes”, explica a pesquisadora, autora ainda de “A trama poética de Murilo Mendes”, em conjunto com Marisa Timponi. “O próprio Ismael Nery pregava a religião como um pastor. Por outro lado, era um rapaz que vivia dos encontros com as pessoas e falava muito. Murilo já era mais calado e foi tomando nota das coisas”, acrescenta Leila, citando, ainda, a produção poética de Ismael que reverencia Murilo e denuncia o quão complexos se tornaram os amigos após o encontro que transcendia as artes ao se alimentar, sobretudo, dela.

“Eu sou a tangência de duas formas opostas e justapostas/ eu sou o que não existe entre o que existe./ Eu sou tudo sem ser coisa alguma./ Eu sou o amor entre os esposos,/ Eu sou o marido e a mulher,/ Eu sou a unidade infinita/ Eu sou um deus com princípio/ Eu sou poeta!”, escreveu Ismael em seu “Eu”, no qual chama atenção para aspectos de gênero que dão sustentação a diferentes teorias que envolvem Ismael, sua esposa Adalgisa e Murilo num triângulo amoroso. “Como pesquisadoras, não encontramos nada que referendasse isso”, ressalta Leila Barbosa. Nas correspondências trocadas entre Adalgisa e Murilo após a morte de Ismael, cujas cópias podem ser encontradas no acervo do Museu de Arte Murilo Mendes, sobressai, principalmente, o poeta que num gesto amigo discordou dos descartes de Ismael e assegurou-lhe a posteridade.

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Livro assinado pelas pesquisadoras Leila Barbosa e Marisa Timponi, publicado em 2009 e indicado ao Jabuti do ano seguinte, compõe mostra (Foto: Divulgação)

ISMAEL NERY: FEMININO E MASCULINO
Visitação de terça a domingo, das 10h às 17h30, no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP), no Parque Ibirapuera (Av. Pedro Álvares Cabral s/nº. Acesso próximo, pelos portões 2 e 3). Até 11 de agosto.

Tópicos: arte

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