Artistas visuais juiz-foranos lançam livro virtual pelo Rumos Itaú Cultural

Carolina Cerqueira, radicada na África do Sul, e Tálisson Mello, radicado no Rio de Janeiro, retratam relações de poder entre brancos e negros em “Mesmo sol outro”


Por Mauro Morais

05/04/2018 às 07h00- Atualizada 30/08/2018 às 16h01

Graduados pelo Instituto de Artes e Design da UFJF, Carolina e Tálisson trabalham juntos desde 2009 e desenvolvem pesquisas distintas, mas que se encontram ao relacionar arte e sociologia (Foto: Divulgação)

O chão que é calçamento também é saldo de trabalho, é passagem, é desafio para o verde que insiste ser pisado, é o histórico das pegadas. No livro “Mesmo sol outro”, os artistas visuais e pesquisadores Carolina Cerqueira e Tálisson Mello repisam diferentes superfícies em busca das narrativas que os formam. Partindo da Juiz de Fora natal, onde se formaram artistas, os dois desbravam a comunidade quilombola Colônia do Paiol, na mineira Bias Fortes, depois seguem para a capital Rio de Janeiro, passam pelas baianas Salvador, Cachoeira e São Félix, e desembarcam no continente africano, para conhecer Luanda, em Angola, e Johannesburgo, na África do Sul. Saem em busca de si e de um trabalho que dê conta das desigualdades raciais que permeiam a sociedade contemporânea.

Em imagens repletas de afeto, a dupla retira pedra por pedra para apresentar um caminho em que as relações sociais se construíram sobre o encontro e o desencontro de raças. “Nos inspiramos na ideia do livro de artista que mistura linguagens e referências”, comenta Carolina, que atualmente cursa o mestrado na School of Arts da University of the Witwatersrand, na cidade sul-africana mais populosa. Para Tálisson, doutorando em sociologia e antropologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o trabalho versa sobre a espacialização e materialização das relações de raça em alguns lugares entre Brasil, Angola e África do Sul.

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Às colagens, fotografias, sobreposições e recortes, Carolina e Tálisson reúnem reproduções de documentos do Fórum Benjamin Colucci digitalizadas pela Universidade Federal de Juiz de Fora, e imagens do Museu Mariano Procópio, cenas que remontam ao período da escravidão e que ajudam a discutir o que os artistas e pesquisadores denominam como a ficção da igualdade. “Enquanto pessoas brancas não se entenderem socialmente como raça e o papel que desempenham nas hierarquias sociais, sem individualismos e sem má-fé, mas percebendo a estrutura que molda as relações ao nosso redor, a violência e a crueldade na relação entre negros e brancos irá permanecer”, defende Carolina, em entrevista que os autores cederam à Tribuna, por e-mail. Disponível na internet, o livro fruto do projeto homônimo apresentado ao programa Rumos Itaú Cultural, sustenta-se no frescor de um tratado sobre o racismo estruturante que, de maneira inegável, calça o Brasil e toda a história mundial recente.

Tribuna – De que maneira Rio, Bahia, Minas, Luanda e Johannesburgo se articulam? Qual o lugar desses espaços em vocês?
Tálisson A experiência de andar por esses espaços, não como turistas ou etnógrafos no sentido mais estereotípico, e sim como duas pessoas questionando as próprias certezas, as imagens pré-concebidas, explorando locais considerados patrimônio por instituições do estado, ou por pessoas dali, conversando com elas, pedindo que nos apontassem seus focos de interesse, afeto, perturbação e desgosto, fizeram perceber algumas camadas profundas da construção de uma estrutura de relação entre pessoas ainda herdeiras da “ordem colonial”. A primeira experiência de deslocamento que tivemos ao longo do projeto foi a visita ao quilombo Colônia do Paiol, onde nosso corpo pesou no espaço, no contexto, no meio das pessoas vivendo a despeito de nós.

Carolina – O que articula esses espaços é a herança colonial opressora e violenta que mantém o racismo atuando na sociedade e fazendo com que pessoas de determinadas cores de pele experimentem diariamente a desigualdade. Mas cada um desses lugares tem suas particularidades, e, como nunca tivemos a pretensão de representar a totalidade da complexidade das relações raciais desses lugares, nós dedicamos a introdução a nos apresentar: uma mulher negra e lésbica, um homem branco e gay, ambos com ensino superior e vindos da classe média. Temos consciência de que nossa experiência e nossa resposta ao que vivemos tem grande influência do nosso lugar de origem.

Vocês discorrem sobre a presença de hierarquias em nossa sociedade. O que reforça esse sistema? Como desestruturar essas ordens?
Carolina – Eu acredito que a maneira de desestruturar as hierarquias presentes em nossa sociedade é justamente conversar, estudar e debater sobre elas. Um dos debates necessários, e um dos que eu sinto mais falta, quando falamos em relações sociais, é o debate sobre a branquitude. Pessoas brancas entendendo e se posicionando sobre a herança de sua raça que persiste e o que significa ser uma pessoa branca nos dias de hoje.

Nesse diálogo com comunidades das quais não pertencem, como articularam o “eu” e o “nós”?
Carolina – Percebendo as semelhanças, mas não esquecendo de nos posicionar no que toca nossos próprios privilégios.

Tálisson – E também entendendo que o “nós”, o “eu” e o “outro” se constituem na relação entre eles. Essa relação que é muitas vezes assimétrica em termos de poder, incluindo controle sobre narrativas.

A face documental que apresentam no apêndice demonstra a crueldade que pautou a relação entre negros e brancos. Como a observam hoje? O que mudou e o que se mantém no panorama que observaram?
Carolina – A relação continua violenta e ainda temos dificuldades em chegar ao centro da questão porque, aparentemente, só as “pessoas de cor” percebem sua raça. Enquanto pessoas brancas não se entenderem socialmente como raça e o papel que desempenham nas hierarquias sociais, sem individualismos e sem má fé, mas percebendo a estrutura que molda as relações ao nosso redor, a violência e a crueldade na relação entre negros e brancos irá permanecer, apenas mudando sua forma.

Tálisson – O “Apêndice” vem no sentido de enfatizar que esse não é um trabalho exclusivamente sobre “cultura negra” ou qualquer outra concepção nesse sentido. O que ocupou nossos pensamentos e sensações tinha mais a ver com as relações raciais, como elas se estruturam, como isso aparece na configuração dos espaços e dos discursos, do patrimônio histórico e cultural. Logo, pensar o lugar da pessoa branca, e eu me incluo nisso certamente, nos parece fundamental, pensar seu lugar de colonizador, colono, imigrante “bem-vindo”, suas condições de integração na economia e na cultura. Pensar, por exemplo, que nessa separação que se faz ao adjetivar de “afro” uma parte da cultura brasileira é preciso ter muito cuidado, ela é importante para destacar, reavaliar a cultura brasileira como um todo, pois não há cultura brasileira que não tenha uma relação com esses espaços, com o trabalho de escravizados que construíram as bases até mesmo de muitos elementos do que seria de matriz europeia na cultura brasileira.

“Mesmo sol outro” se estabelece em capítulos, mas sem que esses espaços sejam nitidamente limitados. Como pensaram a narrativa da obra?
Carolina – Nós decidimos adotar os capítulos como uma maneira de nortear as ideias que queríamos transmitir no livro. Nosso objetivo era que o leitor seguisse o trajeto conosco, pensando uma maneira alternativa para apresentar nossas impressões, uma maneira que não fosse através da palavra escrita. A única seção do livro evidentemente limitada é o “Apêndice: Notas sobre a branquitude suas narrativas, estratégias e legado…”, que é a parte onde nos dedicamos a uma reflexão sobre a branquitude, utilizando para isso, além das colagens, a palavra escrita em documentos históricos e em referencias bibliográficas. Quando pensamos em relações raciais não podemos deixar em segundo plano o significado e o papel da branquitude na construção da desigualdade e opressão baseado na cor da pele.

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Tálisson – A ideia de dividir por capítulos veio quase que por inércia, já que estávamos preparando um livro, que já parecia não resultar em algo curto. Mas logo que começamos a trabalhar na última etapa, percebemos que muitas dessas divisões se dissolveram, ficando marcadas apenas algumas delas. O “Apêndice” de fato tem essa divisão enfatizada, porque também exige uma mudança de atitude do olhar, passando a ler, não sem esforço, documentos em grafia mais antiga, páginas de um guia em francês e listas de referencial bibliográfico.

Vocês produziram muito ao longo da pesquisa. De que forma definiram o que valia ou não integrar o livro?
Carolina – O processo de seleção foi baseado em um storyboard. De fato, nós produzimos uma grande quantidade de imagens, o que possibilitou a variedade necessária para escolhermos as que melhor representariam nossa narrativa.

Tálisson – Isso, nos momentos de imersão, tivemos como instrumentos de registro uma câmera digital, uma analógica, um caderno de anotações, um caderno de desenhos. Não chegávamos com câmeras em punho, primeiro conversávamos com as pessoas, andávamos, sentíamos coisas, conversávamos entre nós dois sobre o que vinha à mente, depois fotografávamos coisas pontuais. Essas discussões viraram anotações que deram base ao storyboard que por sua vez foi base para seleção, montagem e disposição das imagens.

Tópicos: arte

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