Alberto Mussa lança quarto romance de ‘Compêndio mítico do Rio de Janeiro’

Por Marisa Loures

30/05/2017 às 07h00 - Atualizada 30/05/2017 às 10h36

Alberto Mussa situa o quarto livro do seu compêndio na Rio de Janeiro do século XIX  (foto de  Paula Johas)
Alberto Mussa situa o quarto livro do seu compêndio na Rio de Janeiro do século XIX (foto de Paula Johas)

O lançamento oficial de “A hipótese humana” (Record, 176 páginas) está marcado para junho, mas o livro de Alberto Mussa já está à venda em todas as lojas do país, e o Sala de Leitura bateu um papo com o escritor carioca, que se dedica a escrever um “Compêndio mítico sobre a história do Rio de Janeiro.” Nesse quarto volume, de uma série de cinco romances policiais, um para cada século da história carioca (“O trono da rainha Jinga”, A primeira história do mundo”, “ O senhor do lado esquerdo” e “Biblioteca elementar”, esse último ainda a ser escrito), o leitor se depara com um narrador que o situa, com riqueza de detalhes, dentro de uma chácara no Catumbi.

Nesse cenário, ele se vê envolvido nas circunstâncias do assassinato de Domitila, a filha do coronel Chico Eugênio. Quem vai tentar desvendar esse crime, a pedido do pai da vítima, é Tito Gualberto, um ágil capoeira e agente secreto da polícia. Na obra, Mussa passeia por caminhos assombrosos, alcovas, ruas escuras, armazéns e estalagens do Rio de Janeiro oitocentista.

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“Usei em ‘A hipótese humana’ um conjunto de cosmologias indígenas brasileiras, ameríndias, sobre o conceito de alma, a noção de pessoas. A ideia dos meus romances policiais é, justamente, misturar com a mitologia, porque o sentido do crime, o desvendamento, a descoberta, não só do assassino, do que aconteceu, isso seria a parte superficial, mas aquilo que está por trás, na profundidade da história, é uma questão de confronto de concepções de mundo que as mitologias africanas, ameríndias, etc, têm em relação ao nosso pensamento ocidental dominante. A ideia é provocar esse choque, de certa maneira, é mostrar como essas visões de mundo podem ser muito diferentes, ampliar nossa noção de humanidade em geral, do que os seres humanos podem pensar, o que pensam sobre si mesmos.”

Alberto Mussa figura em listas de “melhores do ano”, de veículos como “Veja”, “O globo” e “Folha” e ganhou os prêmios Casa de Las Américas, Academia Brasileira de Letras, Oceanos, Machado de Assis (FBN) e APCA. Mussa tem obras publicadas em dezessete países e quinze idiomas.

Marisa Loures – Por que contar a história do Rio de Janeiro por meio dos crimes?

Alberto Mussa –É como se fossem crimes que, de uma certa maneira, constroem o mito do Rio de Janeiro. Eu parto desses princípios. Por exemplo, na cosmologia indígena, a gente tem, na visão ocidental, a noção de espírito, isso, claro, tirando as pessoas que não acreditam em nada. Mas, de certa forma, toda mitologia que ainda existe no ocidente, que sobrevive nas religiões ocidentais, o cristianismo em todas as suas manifestações, traz a noção de que o indivíduo tem uma alma, tem um espírito, e isso é único, é algo que o torna diferente dos animais. A hipótese serve para explicar o crime, mas também é possível que a gente imagine que, na nossa concepção, na nossa cosmologia, temos uma noção de que somos uma coisa diferente dos animais, os animais não teriam essa alma, não têm esse espírito que caracteriza o homem na sua consciência. Nas cosmologias indígenas, isso é uma pouco diferente. Não se acredita nessa unicidade da alma completamente, e é essa brincadeira que vai entrar na construção do enigma policial. É uma discussão sobre qual é a natureza efetiva da pessoa? O que constitui uma pessoa? O que é a hipótese humana? O que é a parte humana desse animal que é o homo sapiens? Esse é o jogo de fundo que está no romance.

– O livro traz três mapas. Mapa do Catumbi e regiões vizinhas, mapa da chácara onde se passa o crime e planta baixa do térreo do casarão. Depois, no texto, o narrador faz questão de falar que descreve a geografia com certo pormenor porque, sem isso, não se compreende o caso. Qual a importância desse detalhamento todo para sua história?

– Primeiro tem o lado lúdico. Acredito que a literatura pode cumprir uma série de papéis. Além de você ter a parte, digamos, mais nobre, da reflexão, e tudo o que se faz com o texto literário, não deixa de ser um entretenimento. Ainda que seja um entretenimento mais sofisticado, que possa provocar discussões mais profundas, que exija uma intimidade do leitor, ela não deixa de ser uma diversão e não pode deixar. Existe um lado que acho fundamental, e que a literatura contemporânea brasileira tem perdido, é a descrição do ambiente. Você não vê muito, em romances contemporâneos, a preocupação do escritor em descrever o ambiente, não tem paisagem, não tem cena. Tem muita psicologia, tem muita coisa que se passa dentro da cabeça, mas as referências espaciais, visuais, do livro, praticamente, desapareceram. É como se fosse algo inferior, e eu não concordo com essa visão. Você pode trazer um lado lúdico à arte literária. É um romance que se passa no século XIX, então, a gente vai explorar um ambiente que não existe mais, só existe na nossa fantasia. Vê as pessoas se movimentando numa cidade antiga é extremamente prazeroso, por isso a gente visita os monumentos históricos que a cidade conserva. A outra questão é que fiz esta brincadeira, também, de sentido lúdico, dos círculos de cinco pontas, que seriam cinco áreas assombradas, cinco cemitérios, digamos assim, que estão no livro. Como, para escrever, também utilizo esses mapas, isso, para mim é importante como apoio. Vou me movimentando com eles. Eles também facilitam para quem não conhece muito a cidade. Essa pessoa pode acompanhar aquele percurso. Na questão da cena do crime, por exemplo, o leitor que gosta de tentar desvendar, o mapa da planta da casa é importante, porque ele vai começar a observar onde estavam os atores da cena do crime, ele vai começar a pensar em soluções. É sempre um elemento a mais para tornar o livro mais ficção, porque passa a ser um ensaio, passa a ser uma discussão de ideias.

– Na introdução do livro, descobrimos que “A hipótese humana” também se baseia em um caso real que, “mesmo mal documentado nos arquivos da polícia, é dos mais vívidos capítulos da sua lenda familiar”. Que relação essa história tem com sua família?

– Essa historia foi contada para mim, muitas vezes, pela minha mãe. A gente tem um repertório vastíssimo de casos muito interessantes na família. Acho que todas as famílias têm. É importante dizer que modifiquei muito a história original para poder transformá-la num enigma original, atuei transformando a base da história numa situação muito mais complicada. É uma história que aconteceu no século XX, e eu transpus para o século XIX, porque estava querendo explorar aquele momento, principalmente esse universo dos capoeiras, o universo das ruas da cidade, uma parte de personagens que também são muito raros de aparecer na literatura brasileira, seja contemporânea, seja antiga. Digo isso porque, normalmente, o escravo é tratado com uma distância muito grande, ele não tem muita personalidade, não se distingue muito um do outro. Então, procurei, dentro das minhas limitações, recuperar essas personalidades, fazer com que esses personagens tenham caráter, posturas diferentes umas dos outras. Procurei mostrar, inclusive, que havia conflitos étnicos entre eles, que havia uma relação de poder dentro das senzalas, e que essas senzalas influenciavam de maneira tremenda a casa grande.

– Seu narrador é praticamente personagem do livro. E você faz questão de deixar bem marcadas suas interferências na trama, pois conversa o tempo todo com o leitor, o que não nos deixa perceber onde termina a ficção e começa a realidade…

– Escrita é um ofício, um trabalho como outro qualquer. A gente, quando começa, até pode ter habilidade para fazer aquela arte, mas você a desenvolve ao longo do tempo, a experiência vai te dando um domínio maior sobre aquele trabalho que você executa. Então, fui aprimorando no sentido de dominar aquela forma de narrar que acho que é mais compatível com o que sei fazer. Não gosto, por exemplo, de criar muitas linguagens, não tenho esse talento, de fazer uma linguagem poética, ou uma linguagem mais simbólica, essa recriação de sistema linguístico. Isso não me interessa muito, não é algo que eu tenha um dom para fazer. Sei escrever dessa forma, usando o português que conheço. Ao mesmo tempo, também não gosto de ser extremamente psicologizante, de usar o narrador em primeira pessoa, para dar uma personalidade a ele através do que ele fala. Leio muitos livros assim e admiro demais, mas não gosto de escrever dessa maneira. Gosto de escrever mesmo como um contador de histórias, não sou um literato no sentido, digamos, mais glamouroso do termo. Quando a gente conta histórias informalmente, você interfere na história também, porque, em tese, essa história aconteceu, e eu apenas estou contando, é o jogo da ficção, é um pacto do autor com o leitor. Quando você entra num romance, é como se você fosse um espírito pairando sobre aquele cenário e acompanhando os personagens. Por isso fui, de uma forma natural, chegando a esse tipo de narrador que me deixa à vontade. Agora não sofro tanto, como sofria no início da minha carreira, porque encontrei um jeito natural de me expressar.

– Seu detetive é um capoeira, e você faz questão de deixar claro que ele faz parte da polícia secreta. Esse dado é muito importante para o desenrolar da história?

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– Fiquei muito fascinado quando descobri esse dado. Nas leituras que faço para fazer uma imersão no tempo, poder trazer um livro que tenha uma verossimilhança com os fatos históricos, apesar de eu não ser historiador e nem me interessar em reproduzir de uma forma fiel, procuro dar o máximo de verossimilhança. Por isso, vou buscar o máximo de informações. Tenho uma pequena biblioteca com a história da cidade, mapas de todos os séculos, de várias épocas diferentes, para saber como eram as ruas naquele momento em que estou escrevendo. Quando comecei a ler um livro chamado “História da polícia no Rio de Janeiro” me surgiu dar esta informação de que durante o século XIX, principalmente, nos anos 50, um terço do orçamento que era destinado à polícia, era gasto com pagamento de agentes secretos, coisa que, na reforma policial de 1890, foi extinta, porque os capoeiras, que eram os principais informantes e agentes secretos da polícia, eram monarquistas. Então, foram dizimados, houve uma repressão tremenda contra esse grupo. Por isso, de uma certa forma, a arte da capoeira do Rio de Janeiro, que era mais típica da cidade, quase desapareceu. Aí, hoje, a imagem que a gente tem da capoeira, é a da Bahia, que é o berimbau, toda aquela arte que é muito mais dança. A do Rio praticamente foi extinta, porque ela sempre foi associada ao crime, e foi reprimida de uma forma muito violenta pela polícia da primeira república. Quando descobri esse dado, decidi que tinha que fazer um detetive que era um agente secreto e me empolguei. Talvez ele não seja tão importante na trama em si, mas o fato de ele ser agente secreto permitiu que ele fizesse uma investigação à margem da investigação oficial, e isso era importante ar ao romance.

– Você diz que o tema da opressão da mulher é recorrente em seus livros. Na primeira cena do livro, vemos uma mulher se colocar na posição de quem domina durante o ato sexual. Um detalhe que pode parecer comum, mas que, a meu ver, tem a ver com a mensagem que você quer passar sobre a sexualidade feminina, sobre transgredir uma norma imposta pela sociedade…

– Não sei se faço todas as vezes, mas gosto de construir algumas personagens femininas transgressoras, mais ou menos do tipo que essa moça teria sido no século XIX, se você pensar na forma como ela se comporta sexualmente. Uma forma que, para um certo padrão do século XIX, pela visão que temos dessa época, é bastante ousada. Isso está bastante presente na “A primeira história do mundo”, que faz parte desse compêndio, mas esses mitos todos formam um sistema de pensamento. Uma das coisas que sempre me chamaram atenção na mitologia, algo que consigo interpretar, que consigo compreender quando penso sobre esses mitos, e que esses mitos do mundo inteiro dizem, é que a ordem social só existe como é hoje, com o controle da sexualidade da mulher. É como se a sexualidade do homem, de uma certa forma, não fosse corruptora da sociedade. Ela é, digamos assim, aceitável, ela domina, simplesmente. A da mulher precisa de um controle, que o homem tem que exercer. Por isso, tem todas essas restrições sexuais, preconceitos e tabus, que o sexo geral envolve, mas que, particularmente, a sexualidade feminina, a libertação desse eros feminino, seria, na visão mitológica, uma ameaça à estabilidade social. Temos umas figuras míticas até do oriente, do ocidente, a Lílith, por exemplo, que são muito sexuais e que, por serem sexuais, são extremamente ameaçadoras da ordem social. Na “A primeira história do mundo”, esse tema foi trazido de uma forma mais forte, mas ele está presente em “A hipótese humana” por causa dessa personagem. Essa transgressão é importante porque o romance tem que ter uma história extraordinária, não pode reproduzir o mundo normal, para provocar alguma espécie de sensação. Essas personagens têm que ser assim para que elas mostrem como operam essas forças, como a repressão contra elas se dá.

hipotese humana 2

“A hipótese humana”
Autor: Alberto Mussa
Editora: (Record, 176 páginas)

Marisa Loures

Marisa Loures

Marisa Loures é professora de Português e Literatura, jornalista e atriz. No entrelaço da sala de aula, da redação de jornal e do palco, descobriu o laço de conciliação entre suas carreiras: o amor pela palavra.

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