Marcelo Moutinho: “A dor não morre com um clique”
Lembro que quando recebi “A palavra ausente”, de Marcelo Moutinho, li o primeiro conto — “água” — com um nó na garganta. O autor conseguiu, com muita destreza, transportar-me para aquele banheiro, onde fiquei à espreita assistindo ao personagem dar um banho no pai doente. Ali, diante de mim, ocorria uma inversão de papéis, e fiquei imaginando o que se passava na cabeça daquele senhor, que havia se tornado filho do filho. A frase – “Um dia, há muito tempo, dei banho neste menino” — levou-me ao choro. Devo confidenciar que, após a leitura, enquanto eu olhava para a imagem de um par de havaianas solitário, que acompanha o conto de Moutinho, fiquei um bom tempo pensando no que havia lido, pensando no meu pai e na minha mãe.
“A palavra ausente” foi enviado para as prateleiras há dez anos, pela Editora Rocco. Nesse livro, em evidência, está uma reflexão sobre a perda em diferentes matizes. Isso porque, pouco antes, o escritor carioca havia perdido o pai, que travou uma longa batalha contra o câncer. Então, a dor da morte paira sobre as narrativas, mas também a solidão e a desilusão amorosa. Em 2022, a obra ganha nova edição, agora pela editora Malê (112 páginas), e chega às nossas mãos com pequenas modificações.
“As mudanças foram basicamente textuais – corte de trechos reiterativos, alterações de frases –, em busca de um registro no qual o espaço para a cocriação do leitor fosse mais generoso. Acredito que, ao ler um livro, o leitor ajuda a escrever aquela história, já que imprime nela suas experiências, seu estado psíquico, seu modo de ver o mundo. Nesses dez anos, passei a valorizar bem mais os vazios que permitem potencializar essa participação criativa do leitor”, conta o autor carioca, destacando, também, as novidades no aspecto gráfico, como a inserção das ilustrações feitas por Raul Leal com cinzas de queimadas.
Já conversei com Moutinho algumas vezes, e, desta vez, ele volta a falar comigo quase um mês após ser agraciado com o Jabuti, pelo livro “A lua na caixa d’água. Nesta entrevista, ele celebra a conquista do prêmio, que chega com um sabor especial por ter sido na categoria crônica; reflete sobre as várias “perdas que temos ao longo de nossa história”; lamenta o retrocesso vivido pelo nosso país, principalmente nos últimos quatro anos; e comemora a esperança de mudanças.
Marisa Loures – O luto que você viveu pela morte do seu pai foi conjugado com sua escrita que, ao que parece, colaborou para a superação de sua tristeza. Dessa forma, os textos que formam “A palavra ausente” são marcados por alguma forma de melancolia. Como foi para você trazer a perda de seu pai para sua escrita, já que você mesmo diz que ele se foi, mas não é ausência?
Marcelo Moutinho – A perda dele foi, na ocasião, o elemento detonador de uma profunda reflexão sobre a morte e suas implicações. Também sobre as diferentes mortes pelas quais passamos antes de o corpo finalmente perecer. Porque as muitas perdas que temos ao longo de nossa história são como pequenas mortes das quais renascemos, de uma forma ou de outra. No Ifá, religião de matriz africana, há um mito que trata da criação da vida. Conta esse mito que Obatalá recebeu de Olodumaré a missão de moldar todos os seres tendo o barro como elemento. Após delinear cada ser, ele soprava o èmí (sopro da alma), possibilitando a existência. Mas o barro é finito, logo terminaria. Daí Olodumaré estabeleceu um ciclo em nossa passagem pelo Aiê, o plano físico. Os seres, após determinado período, deveriam retornar à substância originária a fim de que novos indivíduos pudessem ganhar molde e então nascer. É uma ilustração belíssima da necessidade da morte para que haja a vida. O Ifá preceitua também que a memória é uma maneira de estender essa vida para além do plano físico. Quando lembramos de alguém, aquele que é lembrado vive. A pior morte mesmo é o esquecimento. Por isso digo que meu pai se foi, mas não é ausência.
– O livro traz uma reflexão sobre perdas em diferentes matizes, isto é, fala não só sobre a dor da morte, mas também sobre solidão e desilusão amorosa. Vivemos em uma época em que ser feliz é uma obrigação, que, às vezes, até nos oprime. Há pouco espaço para se pensar sobre as ausências e o que elas podem significar na nossa vida. Todos nós deveríamos ter coragem de falar sobre esse assunto?
– Acredito que sim. Essa obrigação da felicidade é realmente opressiva e parte quase sempre de uma falsa premissa: a de que é efetiva, e não uma performance, a alegria vendida em suas redes sociais por aqueles nos cercam. Temos uma dificuldade crescente em lidar com a diferença – problema que a lógica do algoritmo agrava – e também com as perdas que fazem parte da vida. Há quem creia fielmente em que o botão de ‘delete’, ou o de bloqueio, possa aniquilar o que parece incômodo. É uma ilusão. A dor não morre com um clique.
– O conto “água”, que abre o livro, deixa evidente a relação entre o tema da perda e a morte de seu pai. Trata-se de uma narrativa na qual você imprime experiências vividas entre pai e filho, mas, com certeza, em razão da arte de escrever contos, que é seu ofício, você não se furta em lançar mão de elementos ficcionais. Como é para você, que acompanhou a batalha de seu pai contra o câncer, essa mescla de testemunho pessoal e ficção, já que, na internet, o lugar de quem fala tem sido alvo de cobranças?
– Esse conto é, de fato, inspirado numa situação que vivi. Mas, como você bem observa, a história ganhou elementos ficcionais. Acho natural que um escritor vez por outra se valha de experiências pessoais na hora de criar um conto, ou um poema, ou um romance. Já essa questão do lugar de fala – importante para diversas outras áreas, ressalto – não me parece caber no campo da ficção. O ficcionista é um inventor de mundos, de realidades, de atmosferas, de personagens. Ficção não é testemunho pessoal, é fabulação. Um exercício de alteridade levado ao paroxismo. Aqui lembro Rimbaud: “eu é um outro”.
– Você acaba de ganhar o Jabuti com “A lua na caixa d’água”, livro em que você homenageia o gênero crônica, homenageia Aldir Blanc, traz as memórias dos primeiros anos de Lia, sua filha, e relatos sobre Madureira, bairro carioca em que você nasceu. Os personagens que transitam seus livros frequentam o subúrbio carioca e, em entrevista recente à Folha de S. Paulo, você conta que, quando menino em Madureira, não se sentia representado na literatura. Ganhar o Jabuti com um livro que traz a vida que se desenrola à margem dos espaços cheios de glamour dá ao prêmio um sabor ainda mais especial?
– Certamente. Fiquei muito feliz por isso e também por ter sido na categoria crônica, esse gênero hoje tão desvalorizado. Não faço gênero blasê, já temos escritores blasê em quantidade suficiente, então assumo sem afetação a emoção pelo reconhecimento. Outro motivo de satisfação foi ter conquistado o prêmio junto com a Malê, que tem feito um trabalho importantíssimo de aposta em novos autores, em vozes vindas dos subúrbios e periferias do país. Temos que aplaudir a atuação das editoras de pequeno e médio porte, hoje responsáveis por grande parte dos livros de contos, crônicas e poemas publicados no Brasil. Essas editoras têm quebrado o monopólio do romance. Foi bonito ver várias delas subindo ao palco na cerimônia de entrega do Jabuti.
– Já que falou sobre a desvalorização da crônica, vale lembrar que, só em 2018, o Jabuti passou a contar com uma categoria exclusiva para esse gênero, e aí você é premiado justamente com um livro de crônica…
– Essa separação já foi um primeiro passo para a revalorização da crônica por parte da organização do Prêmio Jabuti e merece todos os elogios. Antes, contos e crônicas concorriam juntos, o que não fazia sentido algum. Considerava-se apenas o aspecto da extensão textual, ignorando as outras características que ajudam a definir cada um desses dois gêneros. Mas outras premiações, infelizmente, continuam a ignorar a crônica. É curioso, já que se trata de um tipo de escrita que no Brasil alcançou a excelência, além de um jeito próprio, muito singular. Quanto ao prêmio para “A lua na caixa d’água”, fiquei ainda mais feliz porque a lista de finalistas só continha obras da mais alta qualidade. E também porque meu livro, a rigor, é uma grande homenagem à própria crônica e ao ofício do cronista.
– Quando conversamos sobre “A lua na caixa d’água”, chegamos a falar sobre “Uma carta para 2065”, texto que você escreve para Lia quando ela tiver 50 anos. Nele, você fala que sonha com um futuro em que negros e pobres possam ir à praia sem desconfiança. O seu descontentamento com o momento vivido é evidente. E você disse que, depois da escrita desse texto, a situação só piorou, pois o Brasil tem vivido uma onda de muito retrocesso. Hoje, você está já conseguindo ser mais otimista com relação ao amanhã?
– Sim. Estamos num momento de virada. É claro que não será um processo abrupto. A destruição institucional do Brasil foi profunda e o mesmo se deu no plano das relações. Houve um empoderamento do canalha. Aquele indivíduo que mantinha em fogo brando seu racismo, sua homofobia, sua misoginia, sua visão de mundo absolutamente individualista e pouco empática, de uma hora para a outra aumentou a chama. Isso é ainda mais grave num país com tamanhas desigualdades sociais, que até hoje não resolveu o passivo da escravidão. Vejo que o presidente Lula tem uma clara percepção dessa conjuntura e também a noção de que é preciso restaurar o tecido democrático. Mas o desafio que temos pela frente é ainda maior: resgatar o sentido de cidadania, de vida coletiva. É uma tarefa árdua, como se pode ver. O pior, contudo, parece ter ficado para trás. Daí nossa esperança. Uma esperança equilibrista, como diria o Aldir Blanc. Ainda assim uma esperança.
“A palavra ausente”
Autor: Marcelo Moutinho
Editora: Malê (112 páginas)