“O Brasil dá um passo à frente e não sei quantos para trás”, dispara Luiz Ruffato
Desde que estreou no romance, com “Eles eram muitos cavalos”, lá em 2001, Luiz Ruffato procura denunciar, em seus livros, o que ele considera ser nosso grande dilema. Nosso país não avança; ou melhor, avança sim, só que para trás. “Dou sempre um exemplo prático e objetivo. O Lula foi eleito agora, no fim de 2022, tentando recuperar o que o Brasil era em 2002, quando ele foi eleito pela primeira vez, ou seja, no mínimo, 20 anos perdidos. E é sempre assim”, sentencia o autor mineiro, que volta a tocar nessa nossa ferida em “O antigo futuro” (Companhia das Letras, 224 páginas).
Lançado há pouco mais de um mês, o livro aborda a história de quatro gerações de uma família de imigrantes italianos, e a realidade com a qual nos deparamos é a de pessoas que trabalham, trabalham, mas que não conseguem alcançar melhores condições de vida. Assim que o abrimos, percebemos que Ruffato inovou na forma. A narrativa é dividida em quatro partes e começa pela última, ou seja, pelo que seria o tempo presente dos Bertoletto: dia 6 de agosto de 2016. Mês e ano do impeachment de Dilma Rousseff. Um processo que resultou na vitória da extrema direita dois anos depois. Nesse momento, somos apresentados a Alex, um jovem que troca São Paulo por Boston depois do assassinato do cunhado e do irmão.
Depois, saltamos para 8 de outubro de 1994. Agora, o protagonista é Dagoberto, pai de Alex. Nascido em Cataguases, na Zona da Mata Mineira, ele se muda, aos 25 anos, para São Paulo, cidade que, a julgar pelo que ouvia, era sinônimo de emprego e sucesso. É lá que criou os filhos com a mulher que, depois, subitamente, desapareceu. Na segunda parte, retrocedemos mais um pouco no tempo. Cataguases, no dia 7 de fevereiro de 1967, a história está centrada em Aléssio, pai de Dagoberto. Já na última parte, que é o início de tudo, dia 6 de agosto de 1916, a narrativa se fecha com Abramo. Ele veio para o Brasil ainda pequeno, com o pai, a mãe e quatro irmãos. Casou-se, vive em Rodeiro e se sente orgulhoso por iniciar “a semeadura de uma família em solo promissor”.
Nesta entrevista, Luiz Ruffato conta como nasceu “O antigo futuro” e como os personagens dele são criados. Volta a enfatizar que os livros que escreve não são autobiográficos como muitos pensam e faz uma reflexão sobre o fato de o Brasil ser um país de cidadãos deterritorializados. “A pessoa que não tem raízes, de alguma maneira, não tem muito compromisso com o lugar onde ela está, onde ela habita. Ela vai habitar apenas o corpo dela, mas ela não vai habitar o território dela. E, quando isso acontece, é como se nós nunca tivéssemos responsabilidade sobre o que está à nossa volta, e não só do ponto de vista da paisagem, mas também do outro.”
Marisa Loures – A partir da história de uma família de imigrantes, você traz o retrato de um Brasil que está fadado a uma vida restrita à subsistência. Aquelas personagens trabalham, trabalham, mas não alcançam melhores condições de vida. O livro nos mostra que os brasileiros estão marcados por um destino de sempre procurar algo melhor fora do país. Como a ideia de “O antigo futuro” nasceu?
Luiz Ruffato – Todos os meus livros, de alguma maneira, discutem a questão da história política do Brasil a partir da vida ordinária, da vida comum das pessoas. Foi assim desde o primeiro, “Eles eram muitos cavalos”, até esse. Todos tratam exatamente a mesma coisa. Sou um autor monotemático, talvez. Claro que cada um dos livros tem uma forma diferente de entrar na história. Em “O verão tardio”, era a história de um personagem só, em sete dias. Era uma coisa muito compacta. Já, neste livro, trato mais de cem anos da história por meio de quatro gerações de uma mesma família. E a ideia é sempre esta: propor uma reflexão a respeito do nosso grande dilema: o Brasil é um país que não avança. Ou, como formalmente neste livro, ele avança sim, só que para trás. Começa no presente e avança para o passado, que é uma forma, uma alegoria para propor uma reflexão de como a gente não sai do lugar. Dou sempre um exemplo prático e objetivo: o Lula foi eleito agora, no fim de 2022, tentando recuperar o que o Brasil era em 2002, quando ele foi eleito pela primeira vez, ou seja, no mínimo, 20 anos perdidos. E é sempre assim. A gente dá um passo à frente e não sei quantos atrás e, de alguma uma maneira, “O antigo futuro” e todos os meus outros livros tentam propor uma reflexão a respeito disso.
– Você sempre gosta de dizer que seus livros não são autobiográficos. E eu gosto muito de saber a história que está por trás de um determinado livro. Como as histórias de “O antigo futuro” chegaram até você?
– Como você falou, minhas histórias não são autobiográficas. Não tenho um livro que se possa dizer: “Ah, isso aqui é autoficção”. Até o que mais parece autoficção, que é o “De mim já nem se lembra”, que é uma série de cartas que teriam sido escritas para meu irmão, todo mundo acha que aquilo ali é verdade, mas não é. É pura ficção. Minhas histórias nascem da convivência com várias pessoas que conheço. E também você não vai encontrar um personagem nos livros que seja inspirado em alguém. Não existe isso. Não tenho interesse em escrever sobre um personagem inspirado em alguém. Na verdade, é como se você batesse no liquidificador um monte de histórias, e cada personagem vai ter sua própria história. Sou um bom ouvinte. Gosto muito mais de ouvir do que de falar. E acho que tenho cara de padre, porque, às vezes, as pessoas nem me conhecem, sentam perto de mim e começam a me contar histórias. É uma coisa estranhíssima, e eu adoro isso, porque gosto de ouvir. Os personagens todos vão nascer exatamente disso. Não conheço ninguém próximo a mim que more hoje nos Estados Unidos, muito menos na região de Boston, e que tenha tido a trajetória que o personagem tem ali na primeira parte. Não é das minhas relações, mas, ao mesmo tempo, a gente conhece um monte de gente. Tenho certeza de que você conhece alguém, que, de alguma maneira, está naquela situação. Então, os personagens nascem de uma apropriação indébita de vida dos outros.
– Seus personagens estão sempre sem lugar…
– Meus livros têm o tema da desterritorialização. O Brasil é um país de cidadãos deterritorializados. Nós temos uma circulação de pessoas internamente que é um número absurdamente grande. Li uma entrevista que mostrava que, hoje, vivemos o maior número de pessoas circulando pelo mundo em toda a história. E, no Brasil, isso é patente. Na década de 1950, nós tivemos as grandes migrações, que não pararam ainda. E isso traz uma questão que é individual, mas que também é coletiva. É individual porque, quando você migra, quando você está em trânsito, você não tem raiz em lugar nenhum. Mas, se no país inteiro, há pessoas desenraizadas, isso acaba redundando em quê? A pessoa que não tem raízes, de alguma maneira, não tem muito compromisso com o lugar onde ela está, onde ela habita. Ela vai habitar apenas o corpo dela, mas ela não vai habitar o território dela. E, quando isso acontece, é como se nós nunca tivéssemos responsabilidade sobre o que está à nossa volta, e não só do ponto de vista da paisagem, mas também do outro. E isso não é uma questão de escolha. Para mim, uma questão que vai aparecer de uma forma muito clara, porque, quando você está desterritorializado, ou sem raízes em um determinado lugar, esse lugar não te pertence, e você também não pertence a esse lugar. E aí, talvez, acho que um dos grandes nós da construção do Brasil, da tentativa de construção de uma cidadania no Brasil, também passa um pouco por aí. É a impossibilidade de agarrar o espaço à sua volta e torná-lo seu, e isso para mim é uma questão. O livro vai pegar Estados Unidos, depois volta para Cataguases, até Rodeiro. E todo esse itinerário é de pessoas que estão sempre deslocadas. Há um deslocamento espacial, afetivo, cultural. Ou seja, você está sempre num lugar em que não deveria estar e onde você deveria estar você nunca está.
– E parece que essa desterritorialização traz sempre uma melancolia…
– Melancolia é um estado de pessoas que estão deslocadas. Eu me lembro, tem uma imagem, mostrando como essa questão do deslocamento é interessante, de um sujeito falando que estava um dia numa estação de trem no interior da China. Não sei o que ele era. Era Europeu, vamos colocar como Francês. Ele estava lá sozinho e, de repente, ele viu um sujeito que, claramente, era sul-americano, devia ser colombiano ou peruano. Ele olhou para o sujeito, o sujeito olhou para ele, e eles foram na direção um do outro e se abraçaram. E nunca se tinham visto. Muito provavelmente, se eles se vissem na Europa, um não iria querer encontrar o outro, porque era um europeu e um sul-americano. Mas, na China, eles eram parecidos. Acho que essa questão da melancolia é inerente a esse deslocamento, a essas pessoas que não têm raízes, que não têm um lugar para chamar de seu.
– Você mora no Brasil, mas está fora do país. Isso faz enxergar o Brasil de outra forma?
– Acho que não tem como você enxergar o Brasil de outra maneira, sendo brasileiro. Acho uma grande bobagem as pessoas falarem: “Ah, estou morando nos Estados Unidos e agora vejo o Brasil com outros olhos”. Provavelmente, nunca viu o Brasil na verdade. Não há como você ver com outros olhos. Essa questão cultural, afetiva, que você carrega, está dentro de você. A gente até brinca. Às vezes, encontro em Lisboa com um ou outro brasileiro, e a gente brinca. E o Brasil? O Brasil sou eu, é você. Acho que, mesmo que eu vivesse fora de verdade, meu olhar sobre o Brasil seria exatamente o mesmo.
– Você disse numa entrevista que seus protagonistas são sempre masculinos, mas são homens fracos. Já as mulheres são sempre as mais fortes da história. Fiquei pensando nisso enquanto lia seu novo livro. Pensava na mãe do Alex. Ela sumiu, deixou os filhos, a casa, saiu sem nada. E isso aconteceu em um momento em que o pai achava que todos pareciam felizes. A gente percebe o quanto a ausência daquela mãe faz mal para Alex. Parece que ela é tão forte que, mesmo não estando presente, é a âncora, é quem conduz a vida dele…
– Acho que a figura da mãe, desde sempre, está ligada a uma questão de uma âncora, de um porto. É como se diz, você não tem certeza de quem é seu pai, a única certeza que você tem é de quem é sua mãe. Não é possível você pensar que não é filho da sua mãe, ou seja, a mãe é sempre o ancoradouro, é o porto seguro e é o que alimenta. E também pode ser o que te destrói, porque a gente não tem só mães boas. De qualquer maneira, é sempre o ancoradouro. E acho que essas figuras que estão, particularmente, em “O antigo futuro”, elas estão presentes na ausência delas. Quase todas. Eu não tinha percebido isso. Algumas pessoas vieram comentar isso comigo, fui perceber e é verdade. Elas são o ancoradouro distante. Estão, de alguma maneira, desfocadas. E talvez isso seja também uma alegoria do Brasil. Nosso ancoradouro é algo que está presente na ausência dele. E aí também tem um dado, aí sim, talvez biográfico, mas é psicanalítico, né? Como sou filho de mãe italiana (minha mãe é filha de pai e mãe italianos), e nas colônias italianas a mãe tem um papel importantíssimo, apesar do machismo quase doentio dos italianos, a minha mãe representou tudo o que eu posso dizer de bom, devo isso a ela. Então, talvez tenha um pouco do lado psicanalítico, mas acho que também tem um lado político simbólico da questão da figura da mulher sendo um ancoradouro nos pouquíssimos portos seguros que você tem na sua vida.
– Em uma entrevista de 2017, você me disse que existe uma literatura que é muito chata, pois tenta construir pressupostos sempre equivocados, como construir uma linguagem mediana, por exemplo. Você se preocupa em escrever uma boa história, que nos prende, e também se preocupa com a forma. Você busca inovar na forma. No novo livro, você começa a história de trás para sempre, e, ao mesmo tempo, os capítulos seguem de maneira crescente. Como isso foi estruturado?
– Sou considerado um autor formalista. Acho que sou da velha escola, porque sempre achei que literatura é linguagem. Para mim, contar uma boa história tem que ser por meio de uma linguagem. Eu não consigo nem acreditar que se possa contar uma boa história sem uma linguagem adequada. Mas, os meu livros, não sei os outros, não me interessa discutir isso, os meus livros partem desse pressuposto: o “que” da história é tão importante quanto o “com” da história. Preciso que essas duas coisas estejam em conjunto. E só começo um livro quando estou convicto para mim de que aquele livro vale ser escrito para mim. E então, quando isso acontece, já tenho mais ou menos estruturado. A forma, com certeza, ela já existe. No meu caso, a forma antecede a contar a história. Preciso saber como vou contar aquela história. Começo exatamente assim: o título do livro, depois, a epígrafe, o primeiro capítulo, o segundo… Só que não anoto absolutamente nada para fazer isso. Não faço boneco nem anotação. Isso para mim é como se eu deixasse os personagens contarem a história. Eles contam para mim e conto para você, mas são eles que contam a história. Eu só ajudo um pouquinho.
– Acredita que seus personagens seriam seus leitores?
– É claro que não. Meus leitores não são meus personagens. No Brasil, ninguém lê. A quantidade de leitores que temos é ridiculamente pequena. E eu não sou um autor de muitos leitores. Nem os leitores, digamos, a classe média brasileira, que tem acesso à educação, nem ela é leitora. Imagine se o pessoal de classe média baixa é leitor. Evidentemente, existe um esforço de muita gente. Inclusive, posso modestamente dizer que contribuo um pouco com isso, que é de tentar formar leitores nas periferias. Eu contribuo com uma biblioteca em Parelheiros (SP) há muitos anos. É um esforço importante, é um esforço heróico, mas não é um esforço do estado. É um esforço muito pequeno perto das nossas necessidades. Eu não tenho ilusão com relação a isso. Meus leitores, no meu caso, são de diversas classes sociais, mas, com certeza, meus personagens nunca leriam meus livros, não têm muito interesse por cultura.
– Você me disse que é um operário da escrita, precisa dela para sobreviver. Deve existir uma cobrança por parte da editora, mas você parece que não se cobra de fazer um livro que vá atingir um grande público, você quer escrever o que julga pertinente. Como essa relação com a editora funciona?
– Eu creio que ela não faça pressão sobre nenhum autor. Eu não posso dizer se sim ou se não. Eu, pelo menos, nunca me senti cobrado. Minha relação com a editora é muito tranquila nesse sentido. O que eu acho que ocorre é que, infelizmente, não temos estruturada no Brasil uma coisa chamada mercado literário efetivo. Poucas pessoas podem viver de literatura no Brasil, não existem estruturados todos os meios que são inerentes ao mercado editorial. Por exemplo, um mercado editorial que funciona mesmo tem um autor, tem um agente literário que faz a intermediação com as editoras, tem púbico, tem festivais, feiras literárias, etc. Nós temos algumas dessas coisas, mas todas elas muito incipientes. Então, houve, num determinado momento, lá pelos anos 2006, 2007, 2008, até 2010, talvez, houve uma esperança de que pudesse haver uma novidade no mercado editorial, mas, como tudo no Brasil, isso já se desfez. O pouquinho que tinha o governo Bolsonaro enfiou a sola da bota militar deles. Então, infelizmente, o mercado editorial é um mercado como qualquer outro no Brasil, muito incipiente. Estamos muito longe de ter alguma coisa que poderia ser chamada de mercado editorial de verdade.
– Na entrevista de 2017, você falou muito sobre a falta de coletividade do povo brasileiro. Na sua fala, entendi que estava claro que nós somos os culpados pelo Brasil que temos hoje. Será que podemos acreditar em um futuro a partir de agora?
– Essa questão é muito complexa. É como eu disse, estamos iniciando o ano de 2023 como se estivéssemos voltando, no mínimo, uns 20 anos. Essa ideia de futuro é sempre um problema porque é muito mais um desejo do que uma realidade. Se você perguntar para mim: “Você deseja?” É claro, desejo que, daqui para frente, vamos ser um país fantástico, maravilhoso. E a esperança está muito ligada a desejo. A gente sempre deseja que o filho seja bem-sucedido, deseja que a mãe e o pai tenham saúde para sempre. Deseja que o país resolva seus problemas. Essa questão do futuro está muito ligada a desejo. Acho que temos problemas muitos sérios para resolver, e nós estamos patinando na resolução deles. O mais grave para mim é a brutal desigualdade social, é o mais gritante, mas não é uma questão que se resolve numa canetada. Temos problemas graves que poderíamos começar a resolver, o primeiro e mais importante é o da educação básica. Não existe nenhuma possibilidade de o Brasil ter futuro, mesmo que a gente deseje, sem educação básica. A gente pode ficar a vida inteira deitado esperando, e não adianta nada. Isso não é uma coisa que se resolve em um governo, nem em dois, nem numa geração. Isso é um trabalho para o futuro. A questão é: os políticos, realmente, estão pensando nesse futuro longínquo, daqui a 50 anos, com o Brasil tendo uma educação básica resolvida? Ou estamos pensando na próxima eleição? Outra questão é segurança pública. Todos os índices de segurança pública nossos são aterrorizantes. Como vamos resolver isso? Qual é a solução? E finalmente uma questão que vamos ter que enfrentar é a do fundamentalismo cristão no Brasil, que envolve católicos, protestantes, que hoje ocupa um espaço dentro do congresso nacional que inviabiliza qualquer pauta progressista. Como vamos resolver isso? Como vamos conversar com essas pessoas? Como é que vamos tentar, dialogando, fazer com que entendam que há algumas questões, como por exemplo, “puxa, como é que nós podemos, em pleno século XXI, não ter uma legislação de aborto?” É inacreditável. É impensável. Estou dando exemplo. Há muitas outras coisas. Legislação com relação à comunidade LGBTQI, por exemplo. Tem muita coisa que nós não conseguimos levar à frente porque temos realmente uma inviabilização da pauta progressista no congresso.
“O antigo futuro”
Autor: Luiz Ruffato
Editora: Companhia das Letras