Alex Bohrer: “Quem foi Jesus? Essa é a grande indagação”
Para o professor de História da Arte, Iconografia e Simbologia do Instituto Federal de Minas Gerais, Alex Fernandes Bohrer, o fato de contarmos a História em antes e depois do nascimento de Jesus prova como a vida desse homem misterioso foi tão impactante para a humanidade. “Não contamos os anos em antes e depois do nascimento de um político, rei ou general”, reforça Alex, que acaba de enviar para as prateleiras “Jesus – Um breve roteiro histórico para curiosos” (Chiado Books, 254 páginas”), livro gestado a partir de informações coletadas em duas décadas de pesquisa.
A obra tem como proposta apresentar ao leitor o Jesus Histórico. E o itinerário é traçado de maneira bem didática. A cada um dos 25 capítulos, uma pergunta é respondida. Claro que, às vezes, com outras perguntas, já que, segundo o autor, “faz parte da pesquisa a indagação veemente, construtora do conhecimento”. Quem foi Jesus? Como foi a infância dele? Qual era a sua aparência? E sua religião? Ele teve formação intelectual? Era um taumaturgo ou revolucionário?
“Quis escrever um livro sobre esse assunto complexo, mas, ao contrário de outros congêneres, quis ser o mais acessível possível, desenvolvendo um enredo de fácil compreensão, que pode ser acessado por conhecedores ou, como o título da obra indica, por curiosos. Durante o longo processo de análise, colhi material de diversas fontes, sendo as principais o que está contido nos evangelhos canônicos (o desafio aqui é separar o que é histórico do que é alegoria religiosa), nos evangelhos apócrifos (existem muitos evangelhos fora da Bíblia), em escritos de historiadores e cronistas romanos (sim, Jesus foi citado nesses documentos, ainda que esparsamente) e, especialmente, nos achados arqueológicos, que nos últimos anos lançaram luz sobre o contexto em que Jesus viveu, como os famosos Manuscritos do Mar Morto.”
Nesta entrevista, o professor mineiro confessa todo seu fascínio por esse camponês judeu e sem recursos que tinha como única arma as palavras. A propósito, a admiração está explícita no texto que ocupa as páginas do livro. Ele explica quem é Jesus e quem é Cristo, reforçando que não há contradição entre o histórico e o religioso. E, acreditando que, a despeito dos dois mil anos que já se passaram, hoje, Jesus morreria de novo, ele responde a uma última indagação: “O mundo não está preparado para a mensagem dele?”
Marisa Loures – Você apresenta a história de Jesus seguindo um roteiro de 25 perguntas, passando pelo seu nascimento, sua infância, a aparência, até chegar a “Afinal, quem foi Jesus?”. Por que decidiu seguir por esse caminho para traçar esse breve roteiro? E algumas perguntas são respondidas com outras perguntas, como você mesmo escreve. O leitor encontra respostas para todas elas? Ou essa não era a intenção?
Alex Bohrer – Eu escolhi esse modelo porque toda forma de conhecimento começa com uma pergunta. E, como é um roteiro, nada melhor que organizar assim. Acho esse formato didático e instigante ao mesmo tempo. Mas esse método levaria, logicamente, a mais e mais perguntas. O caminho para se entender o Jesus histórico é cheio de bifurcações e, a depender da indagação que faça, você pode tomar um caminho A ou B. Portanto, o que faço, é dar um fio lógico para interpretação. Algumas perguntas vão ser respondidas diretamente, outras não (ou porque carecem de fontes ou porque simplesmente não há respostas para elas no campo da ciência). Posso dar um exemplo de resposta direta, relativamente fácil de se dar: Jesus era branco, de olhos claros, como a arte e o cinema muitas vezes representou? A resposta é não! Ele era um semita, um habitante típico do Oriente Médio. Portanto, toda forma de conhecimento começa com uma dúvida – e dúvidas geram perguntas.
– Você faz questão de enfatizar que Jesus e Cristo são entes diferentes e que não há contradição nesse jogo entre o histórico e o religioso. Quem é Jesus e quem é Cristo?
– Jesus foi um personagem real, um profeta que perambulou na Palestina do primeiro século (como tantos outros de sua época). Trouxe uma mensagem que incomodou as autoridades e foi executado por isso (mesmo destino de muitos outros também). Cristo é um título (a palavra vem do grego e significa ‘ungido’ ou ‘escolhido’ e corresponde ao hebraico ‘Messias’). O primeiro século foi um período especialmente difícil para os judeus, já que estavam sob o domínio do Império Romano. Naquele tempo, esperavam pela vinda desse Messias libertador, que havia sido previsto pelos profetas do Velho Testamento. Dessa forma, apareceram homens como Menahem, Honi, Simão de Pereia, Banus, Teudas etc. Todos com um apelo messiânico ou escatológico (de fim do mundo). Por vários motivos, os outros foram esquecidos, mas Jesus se tornou, para bilhões de fiéis, o Messias previsto. Essa epopeia teológica – que transformou Jesus no Cristo, depois, no filho de Deus e, por fim, no próprio Deus – durou cerca de 300 anos, ao fim dos quais uma nova e poderosa religião surgiu, baseada na existência daquele pobre profeta judeu. E esse processo só foi bem-sucedido graças ao empenho e à vida de seus discípulos ou seguidores, como Pedro, Tiago, João e Paulo (e este, na verdade, nem conheceu Jesus pessoalmente).
– A proposta do livro é levar até o leitor o Jesus histórico. O aspecto religioso também é importante nesse roteiro?
– Sim, sem dúvida. Entender Jesus sem o prisma religioso é impossível atualmente, ainda que possamos ter um claro vislumbre do personagem original. Jesus é hoje mais o que fizeram dele do que ele fez de si. E, como todo personagem de impacto histórico, sua obra não morreu. Ao ser percebido como o Messias, seus discípulos levaram sua mensagem aos confins do Império, sofrendo toda sorte de perseguições. Essa onda de pregação se tornou, por motivos óbvios, um dos pilares do ocidente. E qual a premissa cultural fundamental desse mundo emergente? Jesus era homem e Deus na exata medida. Como homem, sofreu e chorou. Como Deus, resgatou a vida da humanidade. Hoje é difícil dissociar esses dois personagens. Fascina-me sobremaneira o primeiro – e é ele que tento mostrar no livro, mesmo que muitas fontes de época estejam impregnadas de religiosidade e metafísica.
“Mas, pense: ele era um camponês judeu, uma pessoa pobre, sem recursos. Sua única arma eram suas palavras. Por algum motivo, o impacto do que disse não morreu com ele, foi ressuscitado na voz de seus discípulos, se tornando a maior religião do mundo.”
– Por falar nisso, a sensação que eu tenho, lendo o livro, é que você é um grande admirador de Jesus e que seu livro reforça a importância dele para a história da humanidade…
– Sim, sua sensação é correta. Muitos historiadores, ao tentar separar o Jesus histórico do Jesus religioso, acabaram por menosprezar o personagem real. Todavia, eu o acho fascinante! Imagine comigo: se Jesus foi o Deus que andou pela terra, seria de se esperar que ele se tornasse o personagem mais importante da História. Mas, pense: ele era um camponês judeu, uma pessoa pobre, sem recursos. Sua única arma eram suas palavras. Por algum motivo, o impacto do que disse não morreu com ele, foi ressuscitado na voz de seus discípulos, se tornando a maior religião do mundo. Não é incrível essa ascensão? Não contamos os anos em antes e depois do nascimento de um político, rei ou general. Antes, nós centralizamos a História no nascimento de um camponês pobre! Entender esse processo, sem dúvida, lança luz sobre nossa própria trajetória como civilização. Quem foi Jesus? Essa é a grande indagação, portanto.
– Em um dos capítulos, você chama atenção para algumas contradições em torno do nascimento de Jesus. “O que é verdade e o que foi adicionado posteriormente pela tradição?”, indaga você, que recorre aos evangelhos para trazer essa resposta para o leitor. Poderia compartilhar com os leitores da coluna alguma curiosidade que seu livro traz em torno da figura de Jesus e que acaba contrariando a tradição cristã?
– Há várias coisas sobre o Jesus histórico que se choca com a tradição ou com a religião. Um exemplo disso é seu próprio nascimento: sabemos que é bem provável que ele não tenha nascido em 25 de dezembro. Nesse dia, já era comemorado, pelos romanos, o Nascimento do Sol Invencível. Logicamente, com os rumos da nova religião, Jesus se tornou esse sol (que até hoje costuma lhe representar na arte). Nesse caso, a data não é citada na Bíblia, o que favorece a hipótese histórica, mas há outros acontecimentos sobre os quais temos muitas dúvidas. Só para continuar no assunto de seu nascimento, podemos citar o exemplo de Belém, sua suposta cidade natal. A Bíblia diz que José e Maria estavam lá por causa de um censo ordenado pelo Império Romano, todavia sabemos que esse censo foi realizado anos depois do nascimento de Jesus. Será que houve um equívoco do evangelista? Atualmente, alguns estudiosos tendem a crer que Jesus deve ter nascido na terra natal de seus pais, a pequena Nazaré, distante dezenas de quilômetros de Belém.
– Há grandes mistérios a serem desvendados acerca de Jesus. Algum ponto ficou de fora do livro e atiça a sua curiosidade?
– Eu creio que, mesmo tendo abordado este aspecto no livro, há algo que precisa ser mais bem estudado e que ainda carece de novas fontes: a ressurreição. O que, de fato, ocorreu naquele domingo, quando algumas mulheres encontraram o túmulo de seu mestre vazio? Mesmo que saibamos o impacto posterior do que aquelas mulheres relataram, não podemos assegurar o que realmente aconteceu. As autoridades não parecem ter contestado que o túmulo estava vazio (desde sempre alegaram que o corpo havia sido roubado). Mas, para seus discípulos mais chegados e, especialmente, para aquelas mulheres, se o corpo não estava lá, ele ressuscitou dos mortos. Foi essa confiança que fez a mensagem se expandir. Muitos dos primeiros cristãos foram torturados e mortos por todo o Império, tornando a ressurreição de Jesus uma das crenças mais importantes da humanidade. E a pergunta é: o que realmente ocorreu entre aquela sexta-feira da crucificação e a manhã do domingo?
“Eu sempre digo: Jerusalém matou todos os seus profetas e o mundo moderno também, haja vista Mahatma Gandhi, Antônio Conselheiro ou Martin Luther King. A julgar por eles, creio ser bem possível que a mensagem de Jesus, apesar de arrebanhar milhares, acabaria por ser silenciada por um tiro ou grades.”
– Em entrevista concedida recentemente e publicada no site do Instituto Federal Minas Gerais, ao ser questionado sobre como “seria a reação popular às falas e ações de Jesus nos dias de hoje”, você diz acreditar que “ele morreria de novo”. Por quê? O mundo não está preparado para a mensagem dele?
– Creio que, mesmo passados dois mil anos, a sociedade não mudou muito em um aspecto: ainda é, em grande medida, tão intolerante quanto os romanos ou os líderes religiosos foram com Jesus. Sua defesa radical do amor ao próximo, condenando a riqueza e o status quo, incomodou – e ainda incomodaria. Acredito que o estopim de sua morte foi ele ter entrado no Templo de Jerusalém e, munido de um chicote, ter expulsado os comerciantes locais. Quando sua pregação estava circunscrita a um punhado de pobres na Galileia, foi tolerado, mas quando desafiou a elite da Judeia, na velha capital, pagou com a vida. Eu sempre digo: Jerusalém matou todos os seus profetas e o mundo moderno também, haja vista Mahatma Gandhi, Antônio Conselheiro ou Martin Luther King. A julgar por eles, creio ser bem possível que a mensagem de Jesus, apesar de arrebanhar milhares, acabaria por ser silenciada por um tiro ou grades. Mas, sobre isso, o próprio Jesus havia alertado: ‘não ache que eu vim trazer paz à terra’. Sim, isso está no evangelho de Mateus! Se essa frase ressoar o que o Jesus histórico disse, ele sabia que incomodaria. E se incomodou naquele tempo, incomodaria hoje.
“Jesus – Um breve roteiro histórico para curiosos”
Autor: Alex Fernandes Bohrer
Editora: Chiado Books (254 páginas)
Trecho da apresentação do livro “Jesus – Um breve roteiro histórico para curiosos”
Por Alex Bohrer
“Desde o século XVIII, alguns afirmaram que Jesus foi somente um mito entre tantos outros do panteão romano da época. Essa fábula teria sido inventada por um bando de pescadores e pregadores pobres, que, aglutinados em torno do Mar da Galileira, disseminaram a ideia de um nono deus ressuscitado dos mortos. Contudo, essa visão atualmente quase não é mais defendida: ele realmente existiu. Ao contrário dos deuses greco-romanos, que em geral não possuíam dados cronológicos concretos ou confiáveis (por exemplo: quando Júpiter e Vênus nasceram?), temos muitas informações sobre Jesus, sendo que alguns registros não estão fora da Bíblia. […] Sabemos qual foi a época estimada de seu nascimento, a região onde viveu e pregou, o lugar e o contexto de sua morte. Sabemos também a existência de muitos personagens citados nos evangelhos, como Pilatos, Herodes Antipas, João Batista ou Caifás. Esses elementos são suficientes para tirar Jesus do patamar puramente lendário. Trata-se, portanto, de um vulto autêntico, que perambulou na palestina do primeiro século. Tão real era que seus seguidores, logo em seguida à sua morte, estavam dispostos a enfrentar torturas e execuções para defender o que pensavam ser sua mensagem. Seria por demais estranho que tantos homens – como o culto Paulo – estivessem dispostos a renunciar às suas carreiras e às suas vidas por uma figura mitológica recente: uma lenda precisaria de muitos anos mais para se espalhar e se solidificar.”