Luiz Ruffato critica a falta de coletividade do brasileiro
Para participar da I Jornada de Mídia e Literatura, realizada nos dias 8 e 9 de maio, na Faculdade de Comunicação da UFJF, Luiz Ruffato voltou à cidade em que descobriu a literatura e fez amigos com os quais mantém estreita ligação até hoje. Suas palavras iniciais evocavam recordações dessa época, momento efervescente das nossas letras, e instigavam o público a pensar sobre qual o papel devemos exercer coletivamente neste momento tão doloroso do nosso país. “O que acho mais estranho na sociedade brasileira é que somos um monte de gente junta, mas não formamos uma coletividade. No fundo, é como se cada um de nós tivéssemos objetivos e perspectivas que não vão ao encontro uns dos outros”, dispara, enfático, o escritor de Cataguases, apontando para uma realidade em que não há inocentes. Somos culpados pelo Brasil que temos hoje.
“Vou dar um exemplo muito banal. Em São Paulo, existem mansões de gente milionária à beira da Represa de Guarapiranga, e essas mansões jogam seus esgotos dentro daquela represa, que é de onde se retira água para as pessoas beberem. Ao mesmo tempo, um monte de gente que mora nas comunidades, quando tem um sofá que não usa mais, faz o descarte no rio, ou seja, tanto rico quanto pobre, no Brasil, realmente estão se lixando uns para os outros. Estamos nos lixando uns para os outros. Não temos esse senso de comunidade de que aquele rio vai dar numa represa, e de que aquela represa vai fornecer água. É como se você falasse assim: “Vou cuidar do meu quintal. O quintal do vizinho é problema dele”. Não vamos chegar a lugar algum assim.”
Na conversa com o Sala de Leitura, o autor de “Eles eram muitos cavalos” (Companhia das Letras, 136 páginas), refletiu sobre o ensimesmamento da nossa literatura contemporânea, sua compulsão pela reescrita de um livro, o protagonismo do proletariado em suas obras e a recente adaptação, para o cinema, de “Inferno provisório” ( Companhia das Letras, 408 páginas). A obra, composta por cinco volumes, ganhou edição única e revisada no final de 2016 e foi lançada, em Juiz de Fora, durante a jornada. O pano de fundo da publicação é a mudança do Brasil de um país rural, na década de 50, para um país essencialmente urbano no final do século XX.
“Minha discussão no livro é tentar entender o que essa mudança violenta externa provocou na subjetividade dos personagens. É o êxodo rural. Sai de Rodeiro, perto de Ubá, ali que é minha região de imaginário, caminha em direção a Cataguases e depois Rio e São Paulo. É essa tentativa de compreender de onde nós partimos, o que somos hoje e para onde queremos ir algum dia”, conta o escritor, que, por mais de uma vez, fez questão de enfatizar que a opinião do jornalista Luiz Ruffato não está em sua ficção. “Quer saber quem eu sou? Leia as crônicas do El País. Nos livros, é o leitor quem constrói sua leitura.”
Em São Paulo, existem mansões de gente milionária à beira da Represa de Guarapiranga, e essas mansões jogam seus esgotos dentro daquela represa, que é de onde se retira água para as pessoas beberem. Ao mesmo tempo, um monte de gente que mora nas comunidades, quando tem um sofá que não usa mais, faz o descarte no rio, ou seja, tanto rico quanto pobre, no Brasil, realmente estão se lixando uns para os outros. Estamos nos lixando uns para os outros. Não temos esse senso de comunidade de que aquele rio vai dar numa represa, e de que aquela represa vai fornecer água. É como se você falasse assim: ‘Vou cuidar do meu quintal. O quintal do vizinho é problema dele’. Não vamos chegar a lugar algum assim.
Marisa Loures – Você cursou Comunicação Social na UFJF numa época em que os escritores faziam uma literatura engajada. Hoje, você acha que a literatura deve ser política?
Luiz Ruffato – Acho que não. Tanto naquele momento como hoje, o que nós fazíamos, o que eu faço, é fazer literatura e fazer política como duas coisas separadas. A nossa ideia, o que talvez falte um pouco hoje, é que você não precise abrir mão de atuar politicamente, porque acho importante que você atue politicamente na sociedade, e faça poesia. Mas essa poesia não, necessariamente, tem que ser engajada. Na época, fazia poesia e hoje faço prosa de ficção, mas tenho muito claro para mim que arte é uma coisa e política é outra. Não misturo os dois canais.
– Ao falar sobre a questão de você exercer seu papel de jornalista e de escritor de maneira separada, você também disse que as pessoas não têm que omitir sua opinião. A sociedade brasileira, neste momento, precisa muito da opinião dos escritores?
– Acho que, na verdade, precisamos da opinião de todo mundo. Veja bem. Opinião é diálogo. O que está acontecendo no Brasil, hoje, é que todo mundo tem opinião, mas de intolerância. Não é diálogo. Todo mundo tem opinião sobre tudo, e essas opiniões, em geral, são fechadas em si mesmas. Precisamos conversar, mas escutando o que o outro está dizendo. Eu falo, você ouve; a partir do que eu disse, você fala para mim e eu ouço; a partir do que você disse para mim, eu falo. Mas não é assim que as coisas estão acontecendo. Por isso que acredito ser importante que haja esse tipo de evento, no caso, para que possamos, finalmente, refletir sobre aquilo que o outro está dizendo.
– O escritor Marcelo Moutinho disse ao Sala de Leitura que a literatura brasileira está muito ensimesmada. Só jornalistas e escritores têm voz. Quando você dá o protagonismo ao proletariado, você pensa da mesma maneira que ele?
– Conheço muito o Marcelo, a gente conversa sobre essas coisas. Concordo plenamente. Não é um problema em si. O problema é se a literatura se torna apenas isso. O problema, realmente, é que a literatura brasileira, basicamente, hoje, só tem como personagem os próprios escritores. E eu sinceramente acho isso muito chato. Quando vejo que o personagem é um escritor, já perco completamente a vontade de continuar lendo, porque sou escritor e acho a vida de escritor uma chatice enorme. A vida é muito maior que isso.
– À Tribuna de Minas, no ano de 2014, você disse que tinha o compromisso de escrever uma série de livros com a temática do proletariado e que, ao finalizar “Inferno Provisório”, estava quite com o que tinha se proposto. Disse também que isso não te impedia de ir para outras questões…
– Esse compromisso era comigo mesmo, não era com qualquer editora nem com o público. É que, na verdade, meu objetivo inicial era de escrever o “Inferno provisório”. Mais ou menos acho que era aquilo que eu queria escrever. Junto com ele, vieram outros livros. Já me sinto quite com esse, digamos, compromisso inicial que eu tinha, mas me sinto absolutamente à vontade para ou continuar discutindo essa questão, ou nunca mais discutir essa questão, ou discutir essa questão mais lá na frente. Falo isso porque, realmente, meu compromisso, como escritor, é exclusivamente comigo. Não tenho compromisso com o mercado, com ninguém.
Acho que existe uma literatura que, realmente, é muito chata, não me interessa. É uma literatura que tenta construir uma realidade a partir de um pressuposto, e esses pressupostos, no meu ponto de vista, são sempre equivocados. Seja pressuposto de linguagem, ou seja, construir uma linguagem mediana; seja um pressuposto psicológico de achar que, só porque você é uma pessoa pobre, você é menos complexo do ponto de vista subjetivo. Acho sempre muito chato e, enfim, ela é muito presa a modelos pré-concebidos, e eu tento fazer uma literatura que está para além disso.
– Aos poucos, você foi deixando o jornalismo para se dedicar à literatura, e você comentou que encontrou nas crônicas uma maneira de se manter na profissão de jornalista. Quanto do jornalista Luiz Ruffato tem na sua obra de ficção ou não tem nada?
– Tendo a achar que não tem, mas, evidentemente, que alguém pode se debruçar e falar que tem. São linguagens muito diferentes. É a mesma coisa que acontece quando, por exemplo, tenho obra minha adaptada para outras linguagens, seja para o teatro ou o cinema, e não participo. Eu teria que contaminar a linguagem da literatura com aquele tipo de linguagem, e eu acho que minha literatura é não jornalística. Ela tem objetivos que são opostos ao jornalismo. O jornalismo tem objetivo de imediaticidade, tem o objetivo de construir uma linguagem mediana para que o maior número possível de pessoas possa compreender, e que ela não seja dúbia. A literatura é exatamente o oposto. Ela busca uma linguagem mais sofisticada, busca a dubiedade sim, porque é a dubiedade que interessa e sempre com, pelo menos, uma tentativa de construir algo transcendente, que não esteja focado no momento em que nós estamos vivendo.
– Por isso que seus livros não são populistas, conforme você comentou?
– Acho que existe uma literatura que, realmente, é muito chata, não me interessa. É uma literatura que tenta construir uma realidade a partir de um pressuposto, e esses pressupostos, no meu ponto de vista, são sempre equivocados. Seja pressuposto de linguagem, ou seja, construir uma linguagem mediana; seja um pressuposto psicológico de achar que, só porque você é uma pessoa pobre, você é menos complexo do ponto de vista subjetivo. Acho sempre muito chato e, enfim, ela é muito presa a modelos pré-concebidos, e eu tento fazer uma literatura que está para além disso.
– Durante o evento, ocorreu o lançamento do volume único do “Inferno provisório” aqui na cidade. Você falou que tem compulsão por reescrever seus livros. Por que essa necessidade da reescrita? Agora essa obra está a seu gosto?
– Nunca vai estar a meu gosto. Quando eu morrer, aí tudo bem, aí o livro é definitivo, porque tento buscar a expressão mais próxima daquilo que gostaria de escrever. Evidentemente que essa expressão é sempre tentativa, você nunca vai conseguir alcançar o ideal. Como tenho o privilégio de ter várias edições dos meus livros, sinto-me absolutamente à vontade de, todas as vezes que sai uma nova edição, poder olhar e ver onde posso tentar que essa expressão seja mais próxima do que eu gostaria de fazer. Muita gente reclama comigo: “puxa vida, nós fizemos trabalho sobre esse livro”, ou “já li esse livro de uma maneira e vou ter que ler de novo?”. Respondo que isso já não é problema meu. Meu problema é comigo, é tentar essa expressão. Como o “Inferno provisório”, antes de virar essa edição única, ganhou três prêmios importantes, a editora falou: “vamos colocar esses prêmios”. Mas eu falei que não, que esse livro é outro. “Mas a gente perde a oportunidade de mostrar que esse livro já foi premiado”. Respondo que prêmio é coisa de mercado e não de literatura. Literatura não precisa de prêmio, de aval de ninguém.
– Mesmo não gostando de intervir nas adaptações dos seus livros, você pode falar se vê a sua Cataguases e a sua história em “Redemoinho”, filme de José Luiz Villamarim?
– Ele pegou cinco histórias do “Inferno provisório” e construiu a narrativa de “ Redemoinho”. É uma adaptação bastante próxima do livro. Eu vejo sim, embora, muito curiosamente, sei que aquela Cataguases não é a minha, é do José Luiz Villamarim, é de cada um dos atores e, muitas vezes, não é nem do Cataguasense. Lembro que, quando estivemos lá apresentando o filme para o público da cidade, houve um certo incômodo, um constrangimento, porque as pessoas ficaram falando “puxa, mas tem tanta coisa bonita em Cataguases, e eles ficam mostrando casas simples de operários, operários. Por que não mostra o que é bonito na cidade? Então, acho que, talvez, quem poderia responder isso é o Cataguasense.
“Inferno provisório”
Autor: Luiz Ruffato
Editora: Companhia das Letras (408 páginas)