Clinton Davisson: “Estamos vivendo uma distopia que estava prevista há tempos”
Imaginem uma armadura que nos protegesse de ameaças ambientais, vírus e bactérias! Seria ótimo em um momento como este pelo qual estamos passando, não é verdade? Permitiria que saíssemos às ruas e nos relacionássemos com quem quiséssemos, sem medo de contrair ou de transmitir o coronavírus. Pois ela existe no universo de “Hegemonia – O herdeiro de Basten”. O livro do jornalista e roteirista Clinton Davisson, lançado em 2007 e relançado em janeiro de 2020, em formato e-book, na Amazon, é uma mistura de ficção científica com literatura fantástica. Ah, mais uma vez a ficção científica fazendo previsões! Aliás, a obra chegou a ser indicada ao prêmio Portugal Telecon e tem figurado, na Amazon, entre as cem mais lidas do gênero. A trama discute filosofia e religião e debate preconceitos em meio a uma guerra inter-racial.
“Hoje com a Covid-19, estamos caminhando para um futuro onde nossas roupas deverão ser mais adaptadas a evitar contaminação. Não é só usar máscara. Acho que, em breve, teremos versões bem parecidas com a derma, que, apesar de eu chamar de armadura, é, na verdade, uma roupa reforçada que te deixa isolado do contato externo. Se alguém fizesse algo parecido hoje, certamente poderíamos voltar ao trabalho, ao cinema, ter quase uma vida normal mesmo sem a vacina para a Covid-19”, acredita o escritor, apontando, no entanto, para os efeitos um tanto negativos de tal vestimenta tecnológica. “Não desenvolveríamos anticorpos para várias doenças e, com o tempo, simplesmente, não poderíamos tirar a armadura. É o que acontece com os personagens do livro”, conta Clinton, que teve a ideia de criar a armadura ainda criança, quando brincava no sítio da avó, em uma área de mata muito fechada, e imaginava uma forma de ir ao mato sem correr o risco de ser picado por cobras, aranhas e escorpiões.
Clinton é de Volta Redonda (RJ) e formou-se em jornalismo na Universidade Federal de Juiz de Fora, onde também fez mestrado em Comunicação Social. Hoje, atua como diretor e roteirista da produtora Escaravelho, no Rio de Janeiro. A ideia dele é que a saga de “Hegemonia” seja contada em sete livros, sendo que “Hegemonia – Vellanda” já está pronto e deve sair em junho. “Aborda também muito a situação em que vivemos em que grupos de fanatismo religioso e pessoas que acham a ignorância como uma coisa boa a ponto de se gabar. Me assusta como ele é atual, já que comecei a escrever entre 2009 e 2010. Já os próximos devem se aprofundar na questão da migração para a realidade virtual”, adianta o autor, também debruçado no projeto de um livro de terror que explora o folclore brasileiro.
Marisa Loures – Apresente a trama de “Hegemonia”.
Clinton Davisson – Se você está estressado com o isolamento social das últimas semanas causado pela crise do Covid-19, imagine uma sociedade que experimenta isso por centenas de anos? Essa é a visão de “Hegemonia – O herdeiro de Basten.” Orgulhosos de sua supremacia militar e cultural sobre as outras civilizações da galáxia, os seres humanos em um futuro muito distante se autodenominaram A Hegemonia. Seu império e sua cultura, entretanto, estão ruindo lentamente, e seus cidadãos migram em massa para a realidade virtual em busca de um mundo onde não há frustrações, nem tristeza. A interação social fora da realidade social, as emoções e mesmo o sexo foram esquecidos. Neste cenário, o jovem estudante Ron Schowlen é um humano diferente vindo de outra parte do sistema solar. Ele instala um diário neural e começa a gravar seus pensamentos e sua vida na capital da Hegemonia, com seus frios habitantes e sua rotina de isolamento; até que uma decepção o faz abandonar tudo e voltar, depois de dez anos, para Eloá, seu planeta natal. Lá ele vai ter que reencontrar seus irmãos, Shodan e Dúnia, soberanos do reino de Basten. A tensão entre os três só é quebrada pelo pedido de ajuda de uma tribo distante de marsupiais cuja vila está sendo invadida pelos agressivos dragões vermelhos. Durante a viagem pelo cenário grandioso do planeta Eloá, com seu anel de fogo e suas aberrações gravitacionais, Ron vai conhecer melhor a economia e a cultura de um mundo cheio de contrastes e diversidades sociais. Enquanto se preparam para a derradeira batalha contra os dragões, Ron e seus irmãos vão descobrir que, nos domínios da Hegemonia, nem tudo é o que parece e a verdade pode ser algo muito mais terrível do que nosso pior pesadelo.
– “Hegemonia – O herdeiro de Basten” foi lançado em 2007 com 284 páginas. E agora, você fez o relançamento da obra com 416 páginas. O que a nova edição traz de novo?
– Eu era um autor muito inexperiente em 2007, a editora propôs lançar o livro em dezembro de 2007, e eu corri para terminar. Sendo que era um livro que eu havia escrito com toda calma do mundo desde 2000. O final ficou muito rápido e forçado. Agora eu quis escrever um final mais coerente com o resto do livro e mais fechadinho. Talvez tenha sido mero preciosismo. Mas além disso, eu senti necessidade de dar mais profundidade a alguns personagens. Como é uma ficção científica hard, ou seja, que prima por se aprofundar na parte científica, eu tive ajuda de pessoas para realizar alguns cálculos e fiz muita pesquisa em relação a religiões e sociologia e biologia, além de muita física quântica, que é a base de parte da tecnologia da Hegemonia. Por exemplo, como a história se passa em um planeta de proporções gigantescas, as distâncias eram muito diferentes das referências que temos na Terra. O caminho que o navio percorre no livro é o equivalente a três planetas Terras enfileirados. Tive que calcular com ajuda dessas pessoas quanto tempo um navio poderia fazer este percurso e a qual velocidade que teria que ser alcançada. Muita coisa da teoria da relatividade e da física quântica é usada no livro, e, se isso não for bem pesquisado, soa falso.
– E é um livro que traz influências de vários elementos da cultura pop, como a série “Planeta dos macacos”, Monteiro Lobato, “Homem de ferro” e Tolkien, além de conceitos de teóricos da comunicação, como Marshall MacLuhan. Como foi dar corpo a esse projeto?
– Escrevi a primeira versão do livro na faculdade. Queria um livro que abordasse não só ciências, como física, engenharia e biologia, mas também questões de comunicação, sociologia e antropologia. Temos diversas raças diferentes, como os gelfos, que são seres marsupiais. Não suportava mais ver histórias em que todos os planetas, por exemplo, têm a mesma gravidade e contam o tempo do mesmo jeito que a Terra. Sabemos, por exemplo, que animais como cães ou no caso, cangurus, tem um olfato mais desenvolvido que o humano. Tive que imaginar como seria uma sociedade de seres que sentem pelo olfato, se você está mentindo ou se está com fome, ou mesmo ansioso. São relações sociais diferentes. MacLuhan e o Homem de Ferro estão plenamente ligados no livro já que o personagem usa uma armadura muito semelhante ao Homem de Ferro, embora o livro tenha sido lançado em 2007, dois anos antes do filme da Marvel, o fato é que o Homem de Ferro dos quadrinhos influenciou, sim, a armadura em parte. Mas grande parte veio de outros conceitos como o de MacLuhan, que dizia que as ferramentas e até os meios de comunicação são extensões do ser humano. No caso, a armadura é um computador que literalmente supre todas as necessidades do ser humano, inclusive de comer e ir ao banheiro. Trata-se de uma fusão completa entre homem e máquina, a criação de um pós-humano. Essa armadura cobre totalmente o corpo, inclusive a cabeça. A identidade do ser humano passa a ser a armadura e não mais o rosto ou o corpo. Como se fosse no Facebook, onde algumas pessoas preferem colocar uma foto de um desenho animado ou de algum personagem de série do que seu próprio rosto. Além de uma atividade intensa no mundo virtual na qual se pode assumir a forma, a identidade e até o gênero que quiser.
– Como jornalista, você trabalha com a vida real, com fatos. Já na literatura, você trabalha com ficção, fantasia. Em qual dos dois mundos você está gostando mais de ficar ultimamente?
– Jornalismo é uma profissão pouco valorizada, muito glamourizada, e, ao mesmo tempo, exige uma responsabilidade enorme, uma dedicação enorme e uma entrega absurda. Você dorme pensando em pautas, acorda pensando em pautas, se alimenta pensando em pautas e até seus amigos se dividem entre os que dão pauta e os que não dão. Eu fui repórter e editor-chefe de dois jornais no Rio de Janeiro por oito anos, vivi o ambiente de redação, amei ser jornalista. Mas, como diria o falecido escritor, Carlos Heitor Cony, que era um amigo pessoal, o jornalista é um peixe dentro do aquário, e o escritor é um peixe no oceano. Também trabalho atualmente como roteirista e diretor de cinema e TV. Eu diria que, por mais que ame a profissão de jornalista, me sinto muito mais à vontade como escritor, roteirista e cineasta. Mas tenho certeza de que eu precisava passar pelo jornalismo para ser o artista que eu queria ser. Por mais que a gente seja criativo, as histórias que a gente vive no jornalismo sempre superam a ficção em complexidade, em dramaticidade e em emoção.
– Certamente, como um apaixonado por ficção científica, ao se deparar com alguma nova invenção tecnológica na vida real, faz um link com algum filme ou livro que já tenha lido dentro desse gênero. O que a ficção “previu” e que você ainda aguarda, ansioso, acontecer com a humanidade?
– Os temas mais comuns no meu livro são o preconceito, o isolamento social e a desigualdade social e os problemas ocasionados pelo fanatismo religioso. São elementos mais distópicos que utópicos. Mas eu tenho um fascínio por exemplo pela série de TV, Star Trek, ou Jornada nas Estrelas, que imagina um futuro otimista para a humanidade, onde as pessoas buscam o aprimoramento pessoal, o estudo, a cultura, a busca de novos conhecimentos. Enfim, é um futuro onde as pessoas valorizem mais cultura, ciência, o respeito ao próximo e a educação e não fanatismo religioso e um negacionismo da ciência como vemos atualmente no Brasil e no mundo. Eu sou muto fã da série de cinema Star Wars, por todo aquele clima de aventura no espaço, mas, na verdade, eu jamais gostaria de viver naquele mundo que está sempre em guerra e há muita injustiça social. É algo semelhante ao que acontece em Harry Potter. É muito fofo, mas eu jamais permitiria que um filho estudasse em Hogwarts, porque nunca vi uma escola onde morrem crianças todo ano.
“Olha o caso do Brasil atual em que parece que ser burro e ignorante é quase um símbolo de status, virou moda. Nosso ministro da educação não sabe escrever, nossa ministra da Cultura demonstra sinais claros de demência, e o presidente sofre claramente de problemas mentais. Tenho amigos que moram no exterior que me perguntam por que há debates na televisão sobre se devemos ou não ficar em casa na pandemia. Por que agridem jornalistas e até profissionais de saúde? Eu não sei responder.”
– No prefácio do seu livro, o escritor Jorge Luiz Calif diz que você “consegue uma união perfeita entre a ficção científica hard e a espada e magia. Se fosse obra de um autor norte-americano ou europeu, ‘Hegemonia: o herdeiro de Basten’ já seria uma realização notável. Aqui, entre nós, enfrentando as dificuldades que todo autor brasileiro lida, esta obra é quase um milagre a ser celebrado. Só aqueles que já escreveram FC e fantasia no Brasil sabem como é difícil vencer a resistência dos editores, o preconceito e a ignorância do público”. Por que a ficção científica e a fantasia nacional ainda enfrentam tanta resistência? O que dificulta o mercado nacional?
– Lembrando que há muita gente que, como eu, gosta de vários gêneros diferentes. Ao mesmo tempo, acho que cada gênero literário tem um perfil de leitor específico, tem gente que gosta mais de terror, de romance, fantasia, policiais, autoajuda… O leitor de ficção científica também tem um diferencial. Trata-se de um leitor que ama ciência e que gosta de estudar. E por isso ele é bem exigente neste aspecto. Eles chegam a conferir os cálculos dos livros. Não estou dizendo que ele é melhor ou pior, menos ou mais inteligente que o leitor normal, apenas que tem características próprias. Mas o fato é que, embora no cinema a gente encontre sempre a ficção científica como um dos gêneros populares desde a invenção do cinema, na literatura, isso não acontece. Se eu pedir para você citar cinco autores famosos no gênero, aposto que pelo menos quatro já morreram. Então é um público pequeno e raro, principalmente, no Brasil. E ainda existe o preconceito contra os autores nacionais. Carl Sagan dizia que vivemos em uma sociedade intensamente dependente da ciência e da tecnologia, em que quase ninguém sabe algo sobre ciência e tecnologia. Olha o caso do Brasil atual em que parece que ser burro e ignorante é quase um símbolo de status, virou moda. Nosso ministro da educação não sabe escrever, nossa ministra da Cultura demonstra sinais claros de demência, e o presidente sofre claramente de problemas mentais. Tenho amigos que moram no exterior que me perguntam por que há debates na televisão sobre se devemos ou não ficar em casa na pandemia. Por que agridem jornalistas e até profissionais de saúde? Eu não sei responder. Então, quando você se propõe a ser escritor no Brasil e ainda mais lidar com um gênero de ficção científica, você tem que estar preparado para pagar o preço. Eu esgotei a primeira edição do “Hegemonia” em 2010. Eram mil livros. Isso é algo muito raro no Brasil. O livro foi finalista do prêmio Portugal Telecom em 2008, ganhou o prêmio Náutilos, foi considerado pelo projeto Ponto de Convergência como um dos 10 livros mais significativos daquela década. Eu, na minha ingenuidade, esperava que fosse ser tratado pelas editoras como um herói, e, na verdade, não aconteceu foi nada. Até em lugares que trabalhei sofria preconceito. Ouvia comentários: “Olha lá o escritor, ele é maluco, escreve livro”. Fiquei até doente. Só consegui lançar a segunda edição em 2020. Dez anos depois. Mesmo assim, em e-book, pela Amazon.com. E, por sorte, está vendendo bem novamente. Provavelmente, pela temática do isolamento social. Estou aproveitando a pandemia para terminar mais dois livros. Escrever um livro de ficção científica é bilhões de vezes mais difícil e desgastante que uma dissertação de mestrado. Mas eu consegui bolsa para fazer a dissertação de mestrado e praticamente não existe bolsa para escrever livros.
– O cenário distópico que estamos vivendo parece estar favorecendo a procura por livros de ficção científica, como você relatou que está acontecendo com “Hegemonia”. Qual o retorno que essa obra tem dado a você?
– O livro sempre falou da questão de como o isolamento social poderia modificar uma sociedade a longo prazo. No caso de “Hegemonia”, a história foi concebida para sete livros que contariam a história de uma civilização que, por conta desta armadura e das grandes distâncias que o gigantismo de seus planetas proporciona, acabam se isolando. A interatividade social acaba se restringindo ao mundo virtual e o resultado é que a humanidade começa a migrar suas consciências, talvez suas almas, para a realidade virtual. Coisas como interatividade em grupo ou mesmo o sexo foram esquecidos. Isso não é exatamente uma descoberta visionária de minha parte. Muitos estudos são feitos no mundo acadêmico sobre como, por exemplo, é mais fácil conhecer uma pessoa olhando o seu Facebook do que conversando com ela pessoalmente. Hoje é comum ver duas pessoas num restaurante, ou mesmo dentro de casa, sentadas uma ao lado da outra, com a cara enfiada em um celular. Isso não existia em 2007, quando lancei a primeira versão do livro que já falava sobre isso. Hoje é uma realidade. O retorno em termos de vendas e do interesse da imprensa está maior hoje que em 2007. De 20 de janeiro de 2020, quando relancei o livro, para cá, o “Hegemonia” chegou a figurar entre os cem mais vendidos da amazona no gênero. Houve dias em que chegou entre os 50 mais vendidos. O retorno mais gostoso para qualquer escritor é quando encontramos leitores para conversar sobre nosso livro, nossos personagens, nosso mundo. Mas a melhor parte é quando a Amazon me paga. Acho que escrever é um trabalho como qualquer outro e é bom receber pelo seu trabalho.
– Aliás, a procura pelas distopias reflete a preocupação das pessoas com o futuro?
– A ficção científica sempre serviu de norte para cientistas. Foi através de um livro de ficção científica que um cientista se inspirou para criar a bomba atômica. H.G. Wells falou que o tempo era a quarta dimensão dez anos antes de Albert Einstein confirmar isso. Fora Julio Verne, que previu até onde na Lua o homem pousaria. A função do autor de ficção científica é especular o “e se?”. Estamos vivendo uma distopia que estava prevista há tempos. Há filmes como “Contágio” que fala exatamente sobre essa situação em que vivemos. Mas os autores sempre pecaram por superestimar a inteligência da população. Imagina se em “The walking dead” tivesse gente brincando pelo direito de ser mordido pelos zumbis? Em “Hegemonia” eu tentei abordar este assunto da desconfiança em relação à tecnologia. Há um momento em que alguns personagens têm a sua disposição um tanque de guerra gigante para enfrentar dragões enormes que voam e cospem fogo, mas resolvem se reunir para debater, porque alguns achavam melhor não usar o tanque de guerra e usar lanças de madeira contra os dragões. Escrevi isso em 2007 e vemos isso acontecendo hoje na prática com o coronavírus. Pessoas se recusando a usar máscaras, se recusando a ficar em casa e fórmulas mágicas, como a cloroquina e pinga com limão contra uma pandemia.
– E, por falar em futuro, esse momento de pandemia tem trazido muita inspiração?
– Por enquanto, a grande vantagem da pandemia é ter tempo para escrever. Estou terminando dois livros. Tenho certeza de que muitos autores tanto de livros quanto de roteiros vão explorar muito essa pandemia daqui para frente. Mas acho divertido conferir obras até recentes que já previam situações parecidas seja em filmes como “Um lugar silencioso”, “Bird cage”; séries, como “The walking dead”, e livros como “A guerra dos mundos”, lançado em 1897, em que os invasores extraterrestres morrem porque não tinham anticorpos para o vírus da gripe.
“Hegemonia – O herdeiro de Basten”
416 páginas
Autor: Clinton Davisson
Disponível na Amazon