A jornalista mineira Cíntia Nascimento estreia na literatura com “Coisas e crônicas”

Por Marisa Loures

11/04/2017 às 02h09 - Atualizada 11/04/2017 às 02h09

Cíntia Nascimento reflete sobre a vida cotidiana em "Coisas e crônicas"
Cíntia Nascimento reflete sobre a vida cotidiana em “Coisas e crônicas”

Em “Mineirices”, um dos tantos escritos que integram o livro “Coisas e crônicas” (Multifoco, 122 páginas), Cíntia Nascimento confessa que, quem nasce em Minas Gerais, “carrega pela vida uma infinidade de mineirices que sobrevivem ao tempo e às mudanças.” E não é que é verdade? Basta ter um dedinho de prosa com ela para perceber que, apesar de ter nos deixado, por motivos profissionais, nosso jeitinho interiorano está lá, enraizado. A maneira acolhedora e o sotaque são reconhecidos de longe.

Nascida em Cambuí, no Sul do Estado, e por 15 anos moradora de Juiz de Fora, cidade onde se formou em jornalismo, Cíntia tem na escrita uma simplicidade, certamente, adquirida nos tempos em que ouvia as histórias de Vó Maria, a protagonista da crônica número um da publicação. A cronista nos permite dividir com ela recordações de uma época em que, pequenina, acreditava que, num casarão, instalado no lugar onde um dia existiu um cemitério, viviam duas bruxas. São crendices de uma infância em que a alegria era assistir aos shows sincronizados de bichinhos de luz, aguardar por dez meses a noite de Natal chegar para ganhar uma Emília do Sítio do Picapau Amarelo, ou tentar desvendar os mistérios das galinhas que desapareciam do terreiro, aos sábados, sem deixar vestígios.

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“O que eu quis passar é o resgate daquela vida interiorana, em que as pessoas se conhecem, se cumprimentam, dão bom dia. Uns conhecem a vida dos outros. São coisas que marcam a vida de qualquer um de nós. Muita gente que já leu o livro disse que está se identificando muito. Principalmente quem é do interior, independentemente de ser do estado de Minas Gerais, conhece bem esse estilo de vida”, conta a jornalista, que pensou em “Coisas e crônicas” como um convite para lançar um olhar às pequenas e simples coisas da vida cotidiana.

“Ainda hoje, quando me pego namorando de longe as montanhas de Minas, consigo avistar as paredes brancas de cal com janelas de céu desbotado. Parada na porta está a dona da casa, tão digna, hospitaleira, que acena até o carro desaparecer na estrada de terra. Depois entra para retomar a lida, com o sorriso de quem teve um bom dia. E eram mesmo bons, ótimos dias. Os de minha avó colhiam lembranças. E os meus plantavam saudades.”

Marisa Loures – Seu livro contém crônicas e poemas. Por que “Coisas e crônicas”?

Coisas, porque são as coisas do cotidiano, coisas que a gente vive, da nossa história, das observações que a gente faz no dia a dia. São essas coisas que dão o tom para as crônicas e para os poemas.

Logo no primeiro texto, a gente vê que a vó Maria é referência para você. É da sua vivência com ela que muitos dos seus escritos nasceram?

Como muitas crianças, o contato com a minha avó foi muito íntimo, direto, porque eu passava as tardes na casa dela. Então, ela era o reflexo de toda essa cultura mineira, de cultivar coisas pequenas. Quando falo que quero ser a vó Maria é nesse sentido. Nesse texto, falo um pouco sobre o que é o envelhecer. Do tanto que a gente se preocupa hoje em dia com o envelhecimento, de estar bem, de se cuidar. Tento falar um pouco de como ela enfrentava isso apenas vivendo a vida, vivendo os dias da maneira mais simples possível e de uma forma tão bonita. É o que eu quero carregar para mim.

Por que você deixou Minas Gerais? Você parece sentir saudades da sua terra natal…

Deixei por motivos profissionais. Conheci meu marido, que é carioca. Sou do interior de Minas, como no livro fala. Morei 15 anos em Juiz de Fora, onde estudei e trabalhei, conheci muita gente. Sou apaixonada por essa cidade. E aí profissionalmente me mudei para São Paulo e depois vim parar no Rio. É uma saudade, mas não é uma saudade triste. É uma nostalgia boa dos costumes, porque estou sempre em Minas, tanto em Juiz de Fora quanto no Sul do estado. É uma saudade do modo de vida, das pessoas, mas também gosto muito do Rio de Janeiro, adorei morar em São Paulo.

No poema “Mineirices”, você diz que, quem nasce em Minas Gerais, carrega pela vida uma infinidade de mineirices que sobrevivem ao tempo e às mudanças. Ter escolhido morar no Rio em um bairro como o Recreio é prova desse laço com o berço?

Quem conhece vai concordar comigo. O Recreio é um bairro onde as pessoas ainda andam de bicicleta, andam a pé, se cumprimentam. Não é aquela imagem formada que a gente tem do Rio, daquela coisa de novela das 21h, do Leblon, ou daquela violência o tempo todo, de favela. É um lugar que ainda guarda um pouco da vida do interior, apesar de ser no Rio de Janeiro. No livro, falo um pouco disse também, porque as crônicas não são só de Minas. Meus amigos, principalmente, os mineiros, me perguntam se não tenho medo de morar no lá. Respondo que, apesar de parecer difícil, no Rio a gente ainda tem lugares em que você consegue ter uma vida tranquila.

Seu lado jornalista dialoga com seu lado cronista em um dos textos. Como foi essa passagem do jornalismo para a literatura?

Acho uma transição muito fácil, porque a gente acaba contando histórias quando escreve para o jornal ou faz matéria para rádio ou TV. E eu apenas contei as observações que eu tinha para contar. Esse texto, ao qual você faz referência, chama-se “O cheiro da morte”. Nele, falo de uma época em que eu trabalhava como repórter de polícia e cobria uma série de assassinatos que estava acontecendo, provocados por um serial killer e que me marcou muito. Algumas senhoras idosas eram encontradas mortas em suas casas já depois de vários dias, porque a única coisa que despertava as pessoas para a falta delas, que chamava atenção dos vizinhos, era o cheiro. Elas eram tão solitárias, tão abandonadas, que ninguém sentida falta delas. Acho que esse aspecto do jornalismo de a gente viver muitas coisas, observar muito, me ajuda na parte literária.

Você é admiradora de Adélia Prado, Clarice Lispector e Nelson Rodrigues. “Coisas e crônicas” foi influenciado pela escrita deles?

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A gente sempre é influenciada. Gosto demais da Adélia Prado porque, primeiro, ela é mineira de Divinópolis. Sempre gostei muito de ler os textos dela porque trazem questões que eu também penso, com as quais me identifico. Clarice Lispector, porque também fala do cotidiano. Se você pegar qualquer livro dela ou contos e crônicas que ela publicava nos jornais, você percebe ali uma visão diferenciada sobre um fato do dia a dia. E só Nelson Rodrigues eu gosto porque ele tem aquela pegada trágica também da vida como ela é, das coisas do ser humano mesmo.

Outro dia li uma entrevista da Martha Medeiros em que ela diz que gosta de escrever simples. Seu estilo também é simples, e isso é curioso num período em que se vê muito experimentalismo na escrita…

Sempre tento escrever como se eu tivesse conversando, como a gente está falando aqui, como se eu estivesse contando uma história para um amigo. É como eu vejo mesmo a vida. Estou recebendo um retorno positivo disso, porque muita gente me diz: “poxa, é fácil ler seu livro, é gostoso de ler porque parece que a gente está conversando”. Então, é o meu jeito mesmo, o estilo é esse, acho que não consigo fugir.

Essa é sua estreia na literatura. O que você sonha para “Coisas e crônicas”?

Esse livro nasceu de um blog que comecei a escrever em 2013 que também tem o mesmo nome “Coisas e crônicas”. Nem tinha, de imediato, pretensão de publicar um livro, mas as pessoas me diziam: “por que você não publica”? O que quero passar para as pessoas é que elas tentem valorizar um pouco mais o lado simples da vida, as coisas que a gente, na correria, passa por cima e não observa e resgatar aquilo que, lá no início da nossa infância, foi tão importante. Por exemplo, tem uma crônica que se chama “Contos (de) passageiros” em que falo das viagens de ônibus que a gente faz pela cidade da gente sem, às vezes, observar nada, e das pessoas que sentam do nosso lado e contam suas histórias. Falo de como é bom compartilhar esse tipo de experiência, fazer uma pausa de todos os problemas que a gente tem também. É um livro para ser leve.

capa do livro cintia nascimento

“Coisas e crônicas”
Autora: Cíntia Nascimento
Editora: Multifoco (122 páginas)

Marisa Loures

Marisa Loures

Marisa Loures é professora de Português e Literatura, jornalista e atriz. No entrelaço da sala de aula, da redação de jornal e do palco, descobriu o laço de conciliação entre suas carreiras: o amor pela palavra.

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