“A liberdade do verso propõe também a liberdade para a vida”

Por Marisa Loures

09/06/2021 às 07h30 - Atualizada 08/06/2021 às 21h33

O poeta e professor da UFJF Alexandre Faria e o ilustrador German Perez lançam “Prenda: versos livres para crianças livres”, livro voltado para o público infantojuvenil -Foto de Carolina Bezerra

“Prenda” (Guismofews, 44 páginas), estreia do poeta e professor da UFJF Alexandre Faria na literatura infantojuvenil, é uma obra que traz “versos livres para crianças livres”, como já anuncia o subtítulo, aproximando-se da poética modernista. E essa liberdade está presente na forma, mas também no conteúdo. “A liberdade do verso propõe também a liberdade para a vida”, sentencia o autor. Quem foi que disse que azul é cor só de menino e rosa é só de menina? “Neste carnaval/ vou sair de bailarina/ colante coque e tutu/ tudo azul /não porque sou menino/ mas porque gosto/ mas no dia-a-dia/ visto o que quiser/ saio como bem entender/ o gosto não tem cor/ nem gênero pode ter/ vovó sempre me falava/ das amizades coloridas”, escreveu o poeta em um dos 30 textos do livro.

A obra carrega as memórias do menino que um dia Alexandre foi. Carrega muita coisa criada a partir da imaginação do poeta. Carrega também as observações colhidas na convivência do autor com sua filha, Clarice, e também com Oruan, Dandara, Luara e German, filhos de Carolina, sua companheira. Aliás, “Prenda” foi gestado em família, já que as ilustrações são de German, de 14 anos. Nos poemas da primeira parte, encontramos uma criança que brinca de boneca, de carrinho, de bola. “Eu não brinco tanto com bichos/ me amarro na teia de aranha/ do homem aranha/ e de outros heróis/ fantasiados.” Já, na segunda parte, as brincadeiras mais infantis saem de cena e temos a impressão de estar diante de um adolescente, que agora grita dizendo  “Não” ao abuso “de quem quer que seja/ papai titio padre ou pastor”. Um adolescente que já fala da namoradinha do ensino fundamental e que tem o olhar atento para questões sociais e políticas. “hoje sabemos/ que essas coisas são complexas/ o brasil não é o mesmo para todos.”

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Na coluna de hoje, converso com autor e ilustrador de “Prenda”. Alexandre Faria já mandou para as prateleiras “Lágrima palhaça”,  “Venta não”, “oourodooutro”, entre vários outros livros de poesia. German Perez é criador de uma série de gibis chamada “Memento mori”, trabalho que, no ano passado, foi selecionado para a Feira de Autores Mirins de Bologna, na Itália, uma das mais tradicionais do setor. Quem quiser conhecer o trabalho dele com a HQ, basta segui-lo nas redes sociais: @german_perez_art.

O lançamento de “Prenda” está marcado para a próxima quinta-feira (10), às 20h, em um bate-papo virtual no canal da editora, no Youtube. E é no site da Guismofews que o livro está disponível com valor promocional de pré-venda. Depois do dia 10, durante uma semana, quem adquirir um exemplar, recebe ainda o número piloto de “Memento mori”.

 

Em “Prenda: versos livres para crianças livres”, há uma aproximação da poética modernista, rara em livros de poesia infantojuvenil – Foto Divulgação

Marisa Loures – Alexandre, como esse livro nasceu? Por que decidiu conversar com o público infantojuvenil?

Alexandre – Acho que tem uma soma de motivos. Começou há muitos anos quando minha filha estava, talvez, no primeiro ano. Clarice devia ter 6, 7 anos. Havia uma demanda da escola dela de participação dos pais com alguma atividade que nós pudéssemos propor para os alunos. E, quando houve isso conosco, comigo e com a mãe dela, a gente trabalhava muito com sarau de poesia, então nós fizemos um sarau de poesia, e eu fiz um pequeno livreto com um poema, com joguinhos de caça-palavras, e distribui para os coleguinhas dela da escola. Era um poema bem infantil, bem voltado para essa faixa etária de quem está adquirindo a linguagem, aprendendo a escrever. Era um poema da aranha, da ariranha e da arara. Aí eu falei, “poxa, até que me diverti fazendo.” Era um poema de jogos de palavras. Isso me despertou um pouco. Aí, de lá para cá, eu fiz uns dois poemas, meio por uma demanda pessoal. Veio a ideia, e escrevi. Achei que aqueles poemas teriam um tom bacana para a infância. Fiz um poema do balão e da bola, que estão no livro. Até então, era uma vontade vaga de fazer esse livro. Eu não sabia quando eu iria fazer, não sabia que forma ele teria. Eu acho que quando eu comecei a pensar nisso mesmo para valer foi em 2019. Escrevi esse livro inteiro em 2019, e ele surge com a ideia do título, “Prenda”, da festa junina, da pescaria. Fiz alguns meses antes do aniversário da Clarice. Ela ia fazer 11 anos. Aí já estava vivendo com minha companheira, Carolina, mãe do German. Ela tem quatro filhos, mais a Clarice, são cinco. Eu fiquei num convívio com crianças muito mais ativo, e esse diálogo é sempre desafiador para a gente. E, vendo as crianças crescerem, sobretudo, me deu vontade de voltar ao livro. E foi quando eu fechei a ideia de prenda, da poesia como uma prenda também, a ideia da presa, do prender, ideias que fui trabalhando no livro. Depois, fechei o subtítulo e a forma, os versos livres, pensando na liberdade das crianças, e fui elencando temas. Perguntando para crianças, perguntando para todos eles aqui em casa e para amigos que tinham filhos. “Vem cá, o que você acha que seu filho gostaria de ver num poema?” Aí os temas foram surgindo. Pretendia ficar em torno de 25 a 30 poemas. Aí já foi um trabalho mais pontual de fazer um poema de cada tema daqueles que eu tinha escolhido. O livro ficou pronto, encadernei com costura e mandei de aniversário para a Clarice essa primeira versão. Ele ficou guardado algum tempo, e, em 2020, voltei a pensar nele e perguntei se o German topava ilustrar. Então, foi a partir da ideia da ilustração do German que a gente pensou em publicar o livro.

Em “Memento mori”, German apresenta um mundo onde seres diferentes vivem com humanos, e a patia (nome dado à magia naquele mundo) flui em todos os seres vivos – Foto Divulgação

– Como foi a experiência de ilustrar o livro do Alexandre, German? Como foi seu processo de criação? Você leu os poemas e teve total liberdade de criar em cima deles?

German – O Alexandre me mostrou os poemas e disse: “Desenhe as ilustrações que você quiser.” Aí eu criei o que está lá. Ele me deu o livrinho, eu lia os poemas e fazia as ilustrações. Só quando eu terminei é que eu mostrei para ele, aí ele aprovou. Algumas foram difíceis de fazer, porque os poemas são muito complexos, e as minhas ilustrações são bem simples.

– E precisou fazer pesquisa? Qual a diferença entre o tipo de desenho que você fez para “Prenda” e o de “Memento mori?”

German – O estilo que eu usei no livro “Prenda” é bem diferente, porque eu pensei mais em fazer ilustrações infantis mesmo. Fiz no estilo bem cartum, e a minha história em quadrinhos é nesse estilo só que alguns personagens são menos fofos. No cartum, a maioria dos desenhos parece de borracha mesmo.  Na minha história em quadrinhos, alguns personagens não são assim. Pesquisei algumas coisas. Por exemplo, tem um poema sobre o surdo, ele usa língua de sinais para se comunicar. Aí eu não sabia o que fazer para desenhar uma criança surda. Então eu fiz a criança fazendo um sinal que, pelo que pesquisei, significa algo como amor ou eu te amo.

– Gostaria que explicasse a escolha de trazer a poética modernista para a obra.

Alexandre – Percebi nos livros que as crianças leem, de poesias, sobretudo, e nas poesias em geral apresentadas para as crianças, que ainda existe certo rigor da canção, da rima, do ritmo regular dos versos. Então, embora haja outros trabalhos de uma poesia mais livre, quis investir mais nessa ideia da liberdade, da liberdade de criação, e de uma poesia que, assim como a poesia modernista, é mais rica em referências, em alusões, em citações, às vezes diretas, às vezes indiretas. Eu quis fazer isso e quis também estender essa ideia de liberdade. Por isso aquele subtítulo surge logo no início do meu projeto – “Versos livres para crianças livres”. E aquilo surgiu como imagem. O “livres” grandão, e o “versos para crianças” do lado, do jeito que está lá. Aquela imagem surgiu assim para mim, e eu queria também discutir essas ideias de liberdade para as crianças. Acho que é um livro muito ligado ao nosso tempo, um tempo de intolerância, polarização, discussões muitas vezes infrutíferas. Então, eu pensei que o livro deveria falar para as crianças algo que passasse por essa ideia de liberdade, que se faz com o respeito à diferença e ao limite do outro. As questões de gênero estão lá, as de identidade estão lá. Tem todo um jogo, um diálogo com o modernismo. Aí eu cito Manuel Bandeira, Drummond. Vou seguindo por aí.

– Você está entrando num mercado infantojuvenil com uma poesia que prega a liberdade. Por exemplo, “visto o que quiser/ saio como bem entender/ o gosto não tem cor/ nem gênero pode ter”. Que repercussão você espera com o lançamento desta obra, considerando que muitas escolas e boa parte da população são bem conservadoras? Você já espera uma polêmica em torno de “Prenda”?

Alexandre – Se a escola achar que não deve trabalhar com meu livro, azar da escola. Não espero convencer ninguém do contrário. Acho que está muito claro na minha cabeça para quem eu estou escrevendo. É para os filhos das pessoas que eu conheço, e que não são poucas, e que pensam como eu. Acho também que o livro dá caminho para os professores que queiram esse desafio. Acho que o livro vai se tornar um problema maior para os professores do que para mim. Se o professor resolver adotar, ele pode ter que lidar com as reações dos pais, mas vai ter todo meu apoio, e é isso que é o papel do professor hoje. A gente não pode ceder às pressões vindas de nenhum lugar. Uma coisa que a gente reconhece como liberdade de cátedra e que está muito ameaçada por um processo de mercantilização do ensino, sabe? Então, quando você começa a tratar como mercadoria, você acredita naquele lema do mercado, do comércio segundo o qual o cliente sempre tem razão. O cliente pode ter razão para comprar um produto sobre o qual ele vai pesquisar e o que ele quer e o que ele não quer. Agora, sobre educação, o cliente não sabe nada. Quem sabe é o professor, e isso tem que ser respeitado. Infelizmente, no Brasil, não se respeita, mas a gente não pode aceitar. Então, vamos ver como é que fica. Eu acho que é um livro que tem muito material para se trabalhar na sala de aula.

– Acho que é um livro que vai fazer muito barulho…

Alexandre – Em alguns lugares, eu quis provocar mesmo, sabe? Aquele poema, por exemplo, da saúde. Aquele poema surge de uma memória minha. Na oitava série, na sétima série, tinha uma disciplina que era “Educação para a saúde”, alguma coisa assim. Alguma coisa ligada à biologia. E a professora mandava decorar as coisas. E eu decorei que “segundo a OMS, saúde é um bem estar físico, mental e social e não apenas ausência de doenças.” Isso lá naquela época, sei lá, em 1980. Hoje eu não sei o que é e o que não é segundo a OMS, mas eu cito essa definição da OMS. E o que eu estou falando lá é algo que está previsto pela  Organização Mundial da Saúde. Não estou inventando nada, não é um delírio comunista, não é nada disso. Pego tradições que são muito importantes em relação à saúde, que é de uma tradição preventiva. Saúde não é você ter a doença e curar a doença. Isso não é saúde, e é como normalmente a gente pensa no Brasil. Aí eu falo da medicina tradicional chinesa, por exemplo. Na medicina tradicional chinesa, você vai ao médico, o médico te cobra, faz o serviço, faz a terapia que tiver que fazer e te cobra a cada sessão. Se você ficar doente, o médico é obrigado a te atender sem cobrar nada. Na verdade, você vai ao médico para não ficar doente. E a medicina de Cuba também é isso, tem toda uma lógica preventiva, tem investimento em pesquisa. Basta estudar para ver. Eu boto lá esses fatos. Agora, quando eu boto medicina de Cuba, se alguém ficar incomodado com isso, está incomodado com uma fantasia da cabeça dele, não está incomodado com a verdade histórica. Porque Cuba adotou um sistema socialista não significa que a gente tenha que adotar um sistema socialista para ter saúde e bem estar para todos. As pessoas têm medo. Acho que, quem reage, que censura, tem medo de fantasia.

– Como você mesmo diz, a criança do início do livro não é a mesma do final. Percebo que, na segunda parte, já temos um adolescente que demonstra preocupação com questões sociais e políticas. Ele sabe que “o brasil não é o mesmo para todos”. A criança que está neste livro é você? É a que está guardada na sua memória? Ou ali temos sua experiência atual?

Alexandre – Tem uma mistura das duas coisas. Foi uma coisa que depois o German me contou até. E ele vinha me fazer perguntas. Como ele falou, eu realmente não tomei muito conhecimento dos desenhos, deixei muito por conta dele, mas, às vezes, ele me perguntava uma coisa, me perguntava outra. Teve muito desenho que ele teve que fazer pesquisa, buscar imagens de como era, de como não era. Então, de certa forma, é um livro de memórias. Tem uma criança ali que fui eu. Mas também tem um dado da observação das crianças com quem eu convivi ao longo da minha vida toda e com quem eu convivo hoje ainda e, sobretudo, mais de perto, com certo espanto de ver crescer as crianças, de ver como elas se transformam. E aí eu quis sim, acho que sua leitura é muito procedente, eu quis fazer uma trajetória ao longo do livro que vai da infância para um momento que é já de pré-adolescência ou de adolescência, quando as crianças começam a se preocupar com questões mais da ordem social e também com o próprio corpo, com as mudanças do próprio corpo, com as paixões, com o sentimento que pode nutrir pelo outro. Então, começo falando de brinquedos e de brincadeiras e termino falando da criança tentando se inserir em um grupo social, tentando se pensar em um grupo social. Essa segunda parte nasce mais das observações, acho que são questões muito de hoje. Agora, a primeira parte tem muita coisa da memória, mas tem muita coisa inventada também, sabe? Essa coisa do avô, da avó, eu nunca tive relação com avô e avó. Quando eles morreram, eu era muito novo. E eu inventei um avô e avó que iam fazendo uma relação também com a tradição e com a cultura. Meu bisavô, que era amigo de um poeta, e falo de Olavo Bilac. Eu invento também. Por exemplo, aquele dia que eu fiquei de castigo porque fui nadar no tanque de areia com minha colega é verdade. Então, tem memórias ali também.

– Você é um adolescente atento às questões sociais e políticas, German?

German – Não sei como eram as crianças de antigamente. Mas, hoje em dia, todo mundo da minha idade já está muito ligado a essas coisas por causa da internet, eu acho. E acaba ficando mais ansioso por essas questões que talvez a gente nem devia estar discutindo ou devia estar discutindo, só que de uma maneira coordenada.Tem criança da minha idade que acredita em fake news como tem idoso que acredita em fake news.

– Como você, com seu olhar juvenil, vê um livro como este, que traz para o universo das crianças discussões tão sérias e necessárias?

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German – Achei bem interessante e importante também, porque, hoje em dia, a gente aprende as coisas de uma maneira bem diferente. Por exemplo, o Alexandre e minha mãe, quando a gente tem uma dúvida, minhas irmãs mais novas, elas chegam e perguntam para eles. “Como é que nascem os bebês?”. Essas coisas, aí eles explicam. Mas existem famílias que não são desse jeito e ficam ou mentindo ou nem explicam, e aí a criança pode aprender de outras maneiras, ou na internet. Então, acho bem importante ter esses assuntos.

– No último poema, Alexandre escreve que adolescente “não corre atrás de prenda/ nem liga mais pra poesia”, mas ele também avisa “que isso passa”. Acha que seus amigos vão querer ler “Prenda”?

German – Acho que eles não vão querer ler esse livro porque acho que a maioria deles gosta de ler só best-seller dos Estados Unidos, mas, se eles lessem, iriam se identificar e gostar bastante. O problema é que a gente acha que poesia é uma coisa mais de adulto, de pessoas sérias, de professores. A gente só vê poesia onde? Na escola, para estudar, e só. A gente não lê poesia para se divertir, mas nesse livro as poesias são mais leves, são melhores.

Alexandre – Quando eu faço aquele último poema, é uma coisa assim: as pesquisas que existem hoje da leitura no Brasil mostram que as crianças leem mais poesia do que os adolescentes. A poesia é mais lida no Ensino Fundamental do que no Ensino Médio. Então, existe uma certa recusa também, o que eu atribuo aos professores e à maneira como eles abordam, que foi o que o German falou.

– Quais são suas expectativas com o lançamento, German?

German – Espero que o livro seja muito lido, porque ele merece todo reconhecimento. E minhas ilustrações também.

“Prenda: versos livres para crianças livres”

Autor: Alexandre Faria

Ilustrador: German Perez

Editora: Guismofews  (44 páginas)

Lançamento

Dia 10 de junho, às 20h, em um bate-papo virtual no canal da editora, no Youtube.

Até o dia 10 de junho, “Prenda” está disponível, com valor promocional de pré-venda, no site da editora Guismofews.

Depois do dia 10 de junho, durante uma semana, quem adquirir um exemplar, recebe o número piloto de “Memento mori”.

Marisa Loures

Marisa Loures

Marisa Loures é professora de Português e Literatura, jornalista e atriz. No entrelaço da sala de aula, da redação de jornal e do palco, descobriu o laço de conciliação entre suas carreiras: o amor pela palavra.

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