Ricardo Braida: “Escrever é como quebrar pedras, exige suor e sacrifício”

Por Marisa Loures

08/10/2019 às 10h23 - Atualizada 08/10/2019 às 15h27

Ricardo Braida estreia na literatura com“Meus pensamentos são como cavalos selvagens”, livro em que ele traz um duelo entre um escritor e um personagem – Foto Fernando Priamo

Na contracapa de “Meus pensamentos são como cavalos selvagens” (Cachalote, 94 páginas), livro de estreia do professor Ricardo Braida, um alerta: “Cuidado: este livro está vivo”. Braida transforma-o em sujeito da ficção. Assim que abrimos a primeira página, encontramos um escritor às voltas com a criação de uma narrativa. Para-a pela metade. Justifica-se: “Personagem sem identidade e sem fôlego para um romance. Deletar este início ou reescrever a ideia em outro arquivo”. Na página seguinte, mais uma tentativa frustrada. Desta vez, acha que o personagem é “comum para uma história sem graça”. Decide, mais uma vez, apagar..

Contudo, neste momento, é surpreendido pela intromissão de seu personagem. Este não concorda em levar a culpa pela escrita malsucedida. E põe-se a discutir com o escritor, o qual decide provar para o outro que é o autor quem manda nas histórias que cria. Não o contrário. Ao longo de todo o livro, nós, leitores, acompanhamos, curiosos, o início de vários outros contos. Será que o escritor conseguirá finalizar algum texto? A tensão só vai aumentando. O personagem não mede esforços para provar que existe, sim, e é ele quem está no comando. Cansado de ser assombrado, o escritor decide dar um basta. Folhas e folhas em branco. O duelo continua.

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“Essa relação conflituosa se aprofunda ao ponto de criar a tensão narrativa do livro, que é o desconforto de um escritor com a sua imaginação imperfeita e as intervenções de um personagem insatisfeito, em meio a tentativas de contos que são iniciados e abandonados. O livro pode ser ainda interpretado como uma analogia dasnossas vidas cotidianas, em que abrimossites, assistimosa vídeos elemos as chamadas das notícias, sem, necessariamente, chegarmos ao fim do conteúdo”, afirma Ricardo Braida.

Acreditando que tudo que escreve é de “rascunho pra baixo”, em um determinado momento, o personagem-escritor lamenta ser ‘demasiado caudaloso, entranhado da linguagem jurídica e burocrática do dia a dia”. Braida é professor de Direito. Inevitavelmente, toma para si o desabafo de sua criatura, mas é da opinião de que esse dilema não é restrito a ele e seus pares. “Creio que essa seja uma experiência compartilhada por outras pessoas que acabam por se deparar com contratos de adesão, regras de condomínio, cobranças de parcelas a vencer e assim por diante. Portanto, essa linguagem não é exclusiva para aqueles que atuam no campo jurídico, é uma imposição a todos nós”, dispara o professor, que é mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal de Juiz de Fora e cursa doutorado em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense.

Marisa Loures – Por que a ideia de transformar “um livro-objeto em sujeito da ficção”?

Ricardo Braida – Porque, em grande medida, a proposta dessa publicação é fazer com que o leitor sinta que o livro está vivo em suas mãos, como anuncia a quarta capa. A capa do livro traz a imagem de um flamingo, enquanto o título fala sobre “cavalos selvagens”; a epígrafe é debatida no interior do texto com o personagem; páginas totalmente em branco fazem parte do enredo… Diversos elementos internos e externos interagem, fazendo com o que o livro ganhe vida, deixando, portanto, de ser mera coisa, para alcançar o status de sujeito. O livro vivo é sujeito e protagonista da ficção.

“Acredito que a criatividade está aí pela vida, para ser captada quando temos tempo e sensibilidade para observar. A dificuldade mesmo é jogar para o papel. Escrever é como quebrar pedras, exige suor e sacrifício até que se aproxime da forma ideal imaginada pelo autor. E nesse mundo em que somos esmagados pelo trabalho, pelas instituições e compromissos sociais, o que acaba faltando é o tempo para a criação.”

– “Pois fique tranquilo, já terminei de escrever, não sei o que fazer com este texto”, diz o escritor da ficção. O escritor da vida real, Ricardo Braida, já se viu às voltas com o mesmo problema? O que fazer quando a criatividade não vem, e o autor não sabe o que fazer com o texto que acabou de escrever?

Acredito que a criatividade está aí pela vida, para ser captada quando temos tempo e sensibilidade para observar. A dificuldade mesmo é jogar para o papel. Escrever é como quebrar pedras, exige suor e sacrifício até que se aproxime da forma ideal imaginada pelo autor. E nesse mundo em que somos esmagados pelo trabalho, pelas instituições e compromissos sociais, o que acaba faltando é o tempo para a criação. Sou partidário do ócio criativo, o que não é uma possibilidade real no meu caso. Esse livro, especificamente, se desenvolveu entre os anos de 2014 e 2016, época em que eu lecionava em uma faculdade em Ubá e dormia semanalmente em um hotel no centro da cidade. Nas noites de terça-feira, era muito atraente escrever enquanto a televisão passava reality shows. Sentar-me na cadeira desconfortável do quarto e escrever era mais do que me sentir um escritor, fazia com que eu me sentisse um caixeiro-viajante. Caixeiro-viajante… veja lá que personagem mais literário…

– O personagem afirma que os personagens são independentes do autor. Na história, ele chega a propor desafios ao escritor, chegando a tirá-lo do sério. São eles quem, realmente, comandam a narrativa?

São também. Não se deve dar o destino que bem entender a uma personagem. Não é que não se pode, mas não é comum um escritor dar cabo a um personagem que imaginou e criou em uma complexidade própria. No livro eu lamento o destino de algumas tramas, mas não era possível fazer com que houvesse outro caminho. A racionalidade é imperfeita, e, portanto, criar também faz com que sejamos atravessados pelo inconsciente, pelo ficcionar e pelo desejo dos próprios personagens.

 – No meio do livro, encontramos a explicação para o nome da obra. Lá, o escritor conta que “Meus pensamentos são como cavalos selvagens” é uma frase dita por um adolescente esquizofrênico e que ele a tem guardada para nomear um livro que ainda não foi escrito. Qual é a história real que está por trás desse título?

De fato cheguei a esse nome em um diálogo com uma amiga psicóloga, mas em uma situação que não tem nenhuma relação com um adolescente acometido de esquizofrenia. Na conversa, disse à minha amiga que pegaria aquela frase antes que ela se desmanchasse no ar. Acabou por se tornar o título perfeito para o meu livro.

– Seu livro me lembrou muito a peça “Seis personagens à procura de um autor”, de Pirandello. Você, inclusive, cita esse autor no seu texto. A obra do Pirandello foi o ponto de partida para “Meus pensamentos são como cavalos selvagens”? Em que medida, o dramaturgo italiano te influenciou nessa produção?

De forma alguma foi o ponto de partida, inclusive eu não tinha lido a peça quando comecei a escrever minha ficção. Na verdade, essa independência do personagem em relação ao escritor é um tema recorrente na literatura em geral. Basta lembrar as inúmeras vezes em que os personagens da Turma da Mônica se apropriaram dos lápis dos desenhistas para desenvolverem os seus próprios destinos. De qualquer modo, “Seis personagens à procura de um autor”, de Pirandello, foi uma fonte de inspiração encontrada no desenvolver da obra e que fez todo o sentido.

“Estes autores são referências óbvias. Mas, diferentemente do escritor-personagem do livro, o que me influencia mesmo são os textos e não os autores. Aquele lance de ficar citando escritores e personagens em um embate entre os protagonistas me parece uma forma de autoafirmação da existência. Cada um se reconhece em uma determinada identidade para se legitimar perante o outro.”

 – Lendo o seu livro, imagino que, além de Pirandello, Clarice, Kafka, Hemingway e Machado sejam alguns dos escritores que repousam em sua cabeceira. Estou certa? Penso isso porque o escritor cita esses nomes em um dos duelos com o personagem. Eles são referências para seu fazer literário? E quais autores da literatura contemporânea entram para essa lista?

Estes autores são referências óbvias. Mas, diferentemente do escritor-personagem do livro, o que me influencia mesmo são os textos e não os autores. Aquele lance de ficar citando escritores e personagens em um embate entre os protagonistas me parece uma forma de autoafirmação da existência. Cada um se reconhece em uma determinada identidade para se legitimar perante o outro. O personagem cita personagens canônicos, o escritor faz o mesmo. Da literatura contemporânea, posso citar “Quando meu pai se encontrou com o ET fazia um dia quente”, do Lourenço Mutarelli; “Homens imprudentemente poéticos”, do Valter Hugo Mãe; “Curto & Osso”, do W. Del Guiducci. Além disso, sou influenciado na minha pesquisa de doutorado sobre “literatura de cárcere”, onde acabo me deparando com textos maravilhosos, como a autobiografia da Angela Davis, ou “Além das grades”, do Samuel Lourenço.

“Escrever é parar o tempo, viver o impossível, tocar no abstrato.”

– Insatisfeito com tudo o que cria, o escritor diz que o que escreve é “de rascunho pra baixo”, que anda muito desanimado com a literatura. E você? Como é sua relação com ela?

Comecei a escrever a sério em 2008, fazendo rascunhos de poesia, contos, romances inacabados. Por cerca de 10 anos, escrevi sem publicar. Certa vez ouvi uma história que o Flaubert havia dito para Guy de Maupassant que ele deveria escrever por 10 anos e só depois publicar. Acho que essa informação é inverídica, porque já procurei e nunca encontrei nada além da rigidez de Flaubert com os seus discípulos.Mas, de qualquer modo, a maldição me pegou. Em todo esse tempo, só publiquei este pequeno livro que narra as frustações de um escritor e um personagem em meio às desventuras de contos inacabados. Além disso, é preciso ressaltar que escrever, para mim, é uma necessidade e um privilégio. É uma necessidade porque satisfaz meu desejo de me expressar, de minuciar sentimentos, de entrar para dentro de nós mesmos e poder narrar em um longo parágrafo uma cena que duraria frações de segundos. Escrever é parar o tempo, viver o impossível, tocar no abstrato. Mas, além disso, é também um privilégio, pois os livros sempre tiveram presentes ao meu redor, na minha casa, na minha formação acadêmica. Portanto, a literatura surgiu com muita “naturalidade” no meu cotidiano, um capital cultural que me foi acessível com muita facilidade e que me conduziu a escrever e escrever pelas madrugadas afora. Não digo que não haja um esforço tremendo em escrever, e que isso não me exija sacrifícios, mas, enquanto professor de Direito e sabedor das profundas desigualdades que assolam o nosso país, não posso negar que a minha literatura parte de um lugar privilegiado.

– Há projetos de novos lançamentos?

Tenho outros projetos literários em desenvolvimento sim.Nesses 10 anos de tentativa, muita coisa foi escrita e, consequentemente, guardada ou descartada. Mas ainda é cedo para dizer. No momento eu preciso cuidar do meu doutorado e finalizar a minha tese enquanto ainda há tempo para pesquisa nesse país.

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“Meus pensamentos são como cavalos selvagens”

Autor: Ricardo Braida

Editora: Cachalote, 94 páginas

 

 

 

 

 

Trecho de “Meus pensamentos são como cavalos selvagens”

Por Ricardo Braida

“Sempre  o observei de longe, nunca permiti que R.B. gozasse de qualquer privilégio sem o meu olhar de inveja e arrependimento. Aquele homem de origem turca, nariz proeminente, era etílico e exalava autoridade em todas as suas decisões, em todos os seus gestos. Fui sua sombra por toda uma vida, até o dia de hoje, em que seu corpo foi varrido pra debaixo da terra, roubando minhas póstumas homenagens e minha última bala de revólver.

Vi R.B. pela primeira vez em uma paragem próxima ao acampamento das minas. Lá estava eu, solitário e sujo, quando a sua tropa invadiu o lugar e R.B., com a garrucha em punho, exigiu aos berros:

__ Cachaça!

(Anotações: Personagem sem identidade e sem fôlego para um romance. Deletar este início ou reescrever a ideia em outro arquivo)”

 

Marisa Loures

Marisa Loures

Marisa Loures é professora de Português e Literatura, jornalista e atriz. No entrelaço da sala de aula, da redação de jornal e do palco, descobriu o laço de conciliação entre suas carreiras: o amor pela palavra.

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