Cristiano Fernandes: “A vida não bastou para mim, até me encontrar como ator, contador de histórias e escritor”

Por Marisa Loures

07/05/2019 às 07h00 - Atualizada 07/05/2019 às 20h36

Cristiano Fernandes lança, dia 9 de maio, “Que cores os sonhos têm?”, cuja história é a de um menino que encontra no circo a possibilidade para realizar o que almeja – Foto Divulgação

“Era uma vez… um menino e um sonho… Ou melhor, um menino e seus sonhos. Na verdade… era uma vez os sonhos de um menino”. Quem nos conta essa história, repleta de poesia, é o juiz-forano Cristiano Fernandes. Guga é o menino. Até bem pouco tempo, ele vivia somente na imaginação do autor. Mas aí Cristiano decidiu compartilhar as aventuras desse garoto com os leitores e publicou “Que cores os sonhos têm?” (Franco Editora, 24 páginas) em parceria com a ilustradora Margareth Moreira. A obra infantil, estreia do escritor na literatura, ganhará lançamento da nova edição no dia 9 de maio, às 19h, na Biblioteca Municipal Murilo Mendes. Dizem que por lá vai ter muita contação de histórias, bate-papo sobre o processo criativo da narrativa e guloseimas. Além do livro, estará à venda um DVD com as ilustrações animadas.

Pode-se dizer que Guga é “um menino que sonha de olhos abertos e fechados”, conforme diz Jonas Ribeiro em texto para a quarta-capa da publicação. “É um menino como muitos de sua idade: vida simples, família pobre, condições sociais limitantes. Seus pais não são capazes de entender seu modo de ver e de viver a vida. Se a fome o persegue, se ela o acompanha cotidianamente, ele é capaz de voar para bem longe dela, levando sua casa e sua família junto, a quem ama verdadeiramente. Essas atitudes são tão espontâneas que ele acredita ser capaz de virar esse jogo. Ainda não sabe como, mas vai acontecer. Em seus sonhos, acordado e dormindo, ele deseja uma vida feliz e tranquila para ele e para os seus. É verdade que a realidade insiste em dissuadi-lo de suas crenças. Mas a certeza da realização de seus sonhos é capaz de fazê-lo superar todos os sentimentos contrários. Afinal, ele tem ‘fogo nos olhos’”, adianta Cristiano.

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“E quando o circo chega à cidade, ele sabe que as respostas de suas inquietações vêm junto com a lona, com os artistas, especialmente com os trapezistas, que são privilegiados por poderem perceber o mundo lá do alto, e, portanto, têm outro modo de captar a vida. Assim como ele. Para Guga, não existem limites para sonhar, nem tampouco para acreditar nos sonhos”, completa o também professor de literatura, ator, diretor e contador de histórias.

Desde 2015 como coordenador da Biblioteca Delfina Fonseca Lima, de Benfica, Cristiano tem capitaneado iniciativas importantes para a formação leitora, como o “Leitores e mediadores em ação”. O projeto ganhou o reconhecimento, em 2017, do Prêmio Pró-Livro – Retratos da Leitura, promovido pelo Instituto Pró-Livro. E, de lá para cá, as ações se intensificaram. Nessa nossa conversa, ele vai nos contar como estão os trabalhos por lá e ainda vai nos introduzir no sensível e fictício universo de Guga. A propósito, ele sabe bem o que quer para sua obra.

“Tocar os corações dos leitores para que não deixem de sonhar, de acreditar e de ter coragem suficiente para realizar o que sonharam. Guga escreve para sua mãe, ao final do livro, que ela não deixe de sonhar nunca, colorido ou preto e branco. Desejo isso a todos. Uma pessoa que deixou de sonhar, ou que não sabe em que acreditar mais, é alguém desencontrado na vida. Viver é sonhar, é fazer os olhos brilharem. Isso não pode deixar de acontecer. Também sonho em levar para o teatro a história do Guga. Comigo montando ou outro grupo artístico. Pode ser na dança, na música, ou outra linguagem. Bacana demais seria ver meu livro sendo dançado ou musicalizado. Dramatizado, melhor ainda.”

Marisa Loures – Você diz que “um dia, após uma oficina com o escritor Jonas Ribeiro”, sonhou tanto que sentiu “vontade de registrar e partilhar esses sonhos”. Quais são os sonhos de Cristiano Fernandes?

Cristiano Fernandes – Quando pequeno, eu sonhava sempre que estava voando. Era maravilhoso poder voar e saber que estava voando. Sonhava também que dirigia. Era uma delícia poder dirigir, mesmo sendo ainda um menino de doze anos. Também tinha pesadelos, recorrentes, como o de uma criatura feroz que me perseguia, da qual eu tinha muito medo, e me fazia levantar da cama, de madrugada, gritando, apavorado. Sempre acordei antes de ela me capturar. Felizmente. Aos doze anos, comecei a fazer teatro, como ator. Era a realização de um sonho de menino, que assistia a todas as apresentações de um tio e de amigos, e que se encantou com o teatro. Esse menino também via esse mesmo tio, pegando livros numa estante enorme da sala de visitas, e lendo tranquilamente. Seu sonho naquele momento era o de ter altura suficiente para pegar algum livro dessa estante e ler com a mesma elegância e naturalidade de seu tio. Mais tarde, além de atuar, me enveredei pela direção teatral e pelo universo da contação de histórias. Tornei-me também professor de literatura, sendo sempre um leitor voraz. Realizei muitos sonhos: a criatura apavorante não me persegue mais, aprendi a dirigir e sou capaz de voar sem sair do lugar: os livros. Os filmes, as músicas, as narrativas me trazem essa possibilidade. Outros sonhos também tenho: levar a arte, em qualquer de suas manifestações, para o cotidiano de milhares de Gugas que ainda não encontraram os circos e os trapézios para modificarem suas existências.

– Esse menino sonhador e cativante é inspirado em alguém da vida real?

São diversas as inspirações, tanto do mundo real quanto do literário. Sempre admirei as pessoas e as personagens otimistas e “vironas”, que não se contentam com pouco. Na minha família, minha querida avó materna Glorinha, que alçou voos mais altos apenas há três meses, sempre foi minha inspiração. Profissionalmente, vivi ao lado de grandes mulheres vencedoras. A poesia sempre esteve na respiração delas. Também tive o privilégio de conviver com grandes diretores e atores, cujos olhares sempre viam mais além. “Que cores os sonhos têm?” nasce também da influência que tive de dois autores brilhantes, Roseana Murray e Jonas Ribeiro, especialmente de seus livros, “De que riem os palhaços” e “A cor da fome”, respectivamente.

– A realidade de Guga era conviver com a fome. Mas a vida dele ganha novos rumos com a chegada de um circo e de todo o seu universo mágico. Leio seu livro como se ele viesse apaziguar os corações das crianças, mostrando que há caminho para a dureza da vida real…

E você está certa. O caminho era bem esse. Quis colocar no papel uma narrativa que fosse ao encontro da realidade de milhões de meninos e meninas do nosso país, com quem convivia em escolas públicas. O objetivo era conseguir dialogar com eles mais de perto, aproximando-os da literatura e da leitura. E, a partir dessa interação do autor e da narrativa com os leitores, poder provocar uma possibilidade ou vontade de mudança em cada um deles. Eu, de fato, acredito que há caminhos para dar mais leveza à vida real. Um deles é a arte, tendo como uma de suas manifestações a poesia. Adélia Prado escreve que “Às vezes. Eu perco a poesia. Então, eu olho pedra e vejo pedra mesmo”. Faz toda a diferença a maneira como recebemos os desafios da vida. A poesia pode encontrar pessoas com mais ou menos coragem. Para ambas, ela pode ajudar a transformar os obstáculos em estímulos.

Cristiano em cena peça “Sete minutos”, uma versão local do espetáculo escrito pelo ator Antonio Fagundes – Foto Divulgação

– Ainda que sua vida não tenha sido igual à de Guga no que diz respeito às dificuldades pelas quais ele passou, é na arte que você encontrou a forma para realizar seus sonhos. Você é ator, diretor, professor, contador de histórias e poeta. Por isso, vejo você nele…

Difícil não levar um pouco de nós para as personagens. Levei para o Guga, espontaneamente, esse desejo de não se entregar, de ir atrás do sonho, ainda que muitos desacreditem de você.  E o fato de ele se encontrar no circo foi um eufemismo para não ser no palco de um teatro. Aí, sim, descaradamente, eu estaria falando de mim. Não queria isso. O desejo era o de ampliar as possibilidades de realização por meio da arte. E o trapézio e o circo são realidades bem distintas de mim. Tenho fobia de altura. A caminhada do ator para o poeta foi permeada por diversos sonhos que foram se realizando, concomitantemente. Um não existe sem o outro. O diretor é ator e vice-versa. O professor conta histórias, assim como o contador de histórias carrega sua pedagogia. E o poeta traz em si um pouco de todos. Por fim, como escreveu Ferreira Gullar, “A arte existe porque a vida não basta”. A vida não bastou para Guga. E ele se encontrou no trapézio, como artista de circo. Não bastou para mim também, até me encontrar como ator e contador de histórias, e em seguida como escritor.

– E o que você aprendeu com Jonas Ribeiro?

Aprendi a ter coragem de colocar no papel as ideias que estavam em minha mente. Ele nos incentivou, na oficina que tive a oportunidade de fazer com ele, a registrar as ideias e a mostrar os registros para alguma editora e propor a publicação. Lembro-me que, na noite do dia da oficina, eu não consegui dormir. A história deste livro já pedia passagem há um tempo em minha mente. Depois do estímulo dele, cheguei em casa e já fui para o computador escrever. Passei a noite digitando e corrigindo. Ficou pronto junto com o novo dia. Depois, foi só ajustar. Aprendi também a brincar ainda mais com as histórias antes de contá-las. E que ouvir histórias é uma arte também, tão importante quanto a de contar. Aprendi a ser generoso. Ele deixou seu contato para todos nós, ao final da oficina, dizendo que podíamos escrever para ele, mandar o rascunho dos nossos escritos, se quiséssemos. Foi o que fiz. Rapidamente, ele leu e me respondeu. Eu ainda ganhei um presente: os belos e encorajadores comentários dele sobre minha primeira produção escrita impressos no livro. Aprendi, enfim, a lançar o primeiro livro.

“A politização das crianças, assim como outras ordens de conhecimento, deve ir surgindo aos poucos, de forma natural, amadurecendo-se no mesmo compasso do crescimento intelectual delas. Podemos instigar, provocar, apresentar como as coisas funcionam na vida, em casa, na escola, na biblioteca, mas tomando os cuidados para não impor o nosso jeito de ver a vida. Ela é um ser livre, e precisa de espaço para construir seu modo de entender e de se relacionar com o mundo.”

– Já que estamos falando em crianças, há um tempo, o país está dividido politicamente. Como professor e coordenador da biblioteca, você lida diretamente com esse público. Deve estar percebendo como os pequenos de hoje em dia estão politizados a ponto de brigarem uns com os outros nas salas de aula. Isso te incomoda? Devemos politizar as crianças?

O homem é um ser político desde que nasce. Não é possível ignorar isso. Em casa, a criança convive com a política familiar. Na escola também, desde a Educação Infantil. À medida que cresce, mais ainda a política de convivência na sociedade a rodeia. A criança escuta os adultos conversarem sobre a política do bairro, da cidade, do estado, do país. Vivemos em uma sociedade que tem sua organização política. E, como você me pergunta, de fato percebo essa conscientização precoce das crianças. Muitas vezes apenas reproduzem o que ouvem de seus pais ou da TV, sem conhecimento de causa. Isso, sim, me incomoda. A politização das crianças, assim como outras ordens de conhecimento, deve ir surgindo aos poucos, de forma natural, amadurecendo-se no mesmo compasso do crescimento intelectual delas. Podemos instigar, provocar, apresentar como as coisas funcionam na vida, em casa, na escola, na biblioteca, mas tomando os cuidados para não impor o nosso jeito de ver a vida. Ela é um ser livre, e precisa de espaço para construir seu modo de entender e de se relacionar com o mundo. Alguns autores trazem para suas obras essa preocupação em falar de política, em seu sentido geral, para as crianças. Maria Clara Machado fez isso em alguns de seus textos infantis para teatro: “O Dragão Verde”, “Maria Minhoca”, “Pluft, o fantasminha”, para não dizer que foi em todos. Porém, apresentava para as crianças de forma lúdica, engraçada, desafiadora. E deixava que as crianças, livremente, tomassem partido ou não às ideias dela. Outros autores também assim o fazem. Jonas Ribeiro é outro exemplo, entre outras obras, a já citada “A cor da fome”. O que me incomoda mesmo, no ser humano, é a intransigência e a parcialidade. Não temos pensado no coletivo, apesar de vivermos em sociedade. Essa conscientização, sim, precisa ser “proclamada” para todas as crianças, adolescente e adultos. Somos seres livres em todas as manifestações, e a ausência de discussão acerca da diversidade, da inclusão e da acessibilidade, em casa, na escola, na biblioteca e por meio da literatura, apenas nos impedirá de exercer nossos direitos políticos plenos de ética e de respeito ao próximo.

“A missão da biblioteca é desenvolver, cotidianamente, ações de fomento à leitura e à cultura, aproximando as pessoas da biblioteca e a biblioteca das pessoas, reafirmando o potencial da instituição para a formação, a informação e a educação, a fim de contribuir para a evolução das pessoas de forma criativa. Nessas ações que nos pautamos.”

– Desde 2015 na coordenação da Biblioteca Delfina Fonseca Lima, em Benfica, você tem desenvolvido diversas atividades em prol da leitura. E essas atividades renderam a vocês o reconhecimento na segunda edição do Prêmio Pró-Livro – Retratos da Leitura, promovido pelo Instituto Pró-Livro.  As ações que já eram realizadas continuaram e/ou foram intensificadas depois desse reconhecimento?

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Sim, as ações não só continuaram como foram intensificadas, além de outras que foram criadas. O Prêmio do IPL (Instituto Pró-Livro) foi um grande incentivo para tudo que fazemos. Mantivemos o projeto “Leitores e mediadores em ação”, somando outras ações, como a “Visita guiada com ação literária”, em que levamos escolas do bairro e da região para conhecer todos os serviços gratuitos oferecidos pela biblioteca, contamos histórias e deixamos um bom tempo de leitura livre, no qual as crianças têm a liberdade de ir às estantes e pegar o livro que quiserem, trocar o livro, ou até de não ler; “Intervenção literária na praça de Benfica”, quando transformamos parte do espaço físico da Praça Jeremias Garcia em estações de leitura, nos quais alunos de escolas da região e pessoas da comunidade podem assentar-se e ler ao ar livre, assistindo também a apresentações de teatro, de contações de histórias e de música; “Venha ler com seu filho”, projeto que visita as escolas, convidando seus pais e familiares para lerem com eles; “Sarau itinerante”, proposta de sarau mensal, nas escolas, que leva o hábito de reunir alunos, professores, comunidade escolar para ler, ouvir, declamar, ouvir boa música, dramatizar textos poéticos a partir de um tema escolhido por todos; entre outros. A missão da biblioteca é desenvolver, cotidianamente, ações de fomento à leitura e à cultura, aproximando as pessoas da biblioteca e a biblioteca das pessoas, reafirmando o potencial da instituição para a formação, a informação e a educação, a fim de contribuir para a evolução das pessoas de forma criativa. Nessas ações que nos pautamos.

– Você já me disse que é quase desleal a concorrência que a biblioteca enfrenta com a internet, as redes sociais, computadores e celulares. Mas que era possível fazer um diálogo com esse universo. De que maneira a Delfina Fonseca Lima tem procurado dialogar com as novas tecnologias para não perder leitores? Ela tem vencido essa disputa aí em Benfica?

Não sei se estamos vencendo essa batalha, mas sei que estamos marcando presença na vida das pessoas da comunidade de Benfica e de seu entorno. Baseados na missão que tem a biblioteca, nossas ações têm tentado fazer dela um equipamento cultural de referência literária e artística para o bairro e seu entorno, contribuindo para a formação de leitores críticos de si mesmos e do mundo que os cerca, a partir da parceria com outros equipamentos culturais e educativos da região. Penso que o espaço chamado biblioteca há muito tempo não é apenas um local de leitura, de pesquisa, e de empréstimos de livros. Nele cabe muito mais que isso. A biblioteca é também um espaço de convivência, de fazer amigos, de diálogos, de reuniões, de saraus, de parcerias, e que não se limita ao seu espaço físico, muito mais precisa investir em seu espaço simbólico. Precisa avançar, sair de si mesmo e ir ao encontro do que as pessoas buscam, inovando suas relações com os leitores e estimulando os ainda não leitores. Ou seja, a mediação de leitores deve também buscar ser a mediação cultural, social e de espectadores.

– Há novos projetos em mente?

– A princípio, não tenho outra narrativa em mente para publicar. A qualquer momento, pode surgir. Por hora não. Para a biblioteca, muitos novos projetos: “Todo dia é dia de ler”, “Sexta tem conto”, “Vivências artísticas nas áreas do teatro e da contação de histórias”, “Encontros artísticos entre as escolas”, “Formação em contação de histórias”, “Leitura livre”, “Encontro com educadores”, “Pequenos leitores, grandes escritores”, “Teatro lido”.

“Que cores os sonhos têm?”

Autor: Cristiano Fernandes

Franco Editora (24 páginas)

Lançamento da nova edição: 9 de maio, às 19h,na Biblioteca Municipal Murilo Mendes (Av. Getúlio Vargas – Centro).

Marisa Loures

Marisa Loures

Marisa Loures é professora de Português e Literatura, jornalista e atriz. No entrelaço da sala de aula, da redação de jornal e do palco, descobriu o laço de conciliação entre suas carreiras: o amor pela palavra.

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