Histórias trazidas do velho continente
O autor que bate ponto na coluna de hoje é um apaixonado por contar histórias. E eu amo histórias bem contadas. Com bons personagens e um bom conflito. Enquanto leio, vou criando o personagem fisicamente e tentando percorrer o caminho traçado por ele. Aliás, já contei isso nesta coluna. E também gosto de imaginar a história que está por trás daquela história. Isso aconteceu comigo quando recebi o livro do juiz-forano Daniel Furlan. A sinopse chegou às minhas mãos com a informação de que “De primeira viagem: personagens da Europa” (Chiado Books, 204 páginas) traz 60 contos semificcionais, escritos por um jornalista que nunca havia saído do Brasil e que realizou o sonho de passar 20 dias na Europa. Os textos foram produzidos a partir do contato que ele teve com mais de cem pessoas durante a passagem por Itália, Suíça, França e Inglaterra.
Pois bem! Já no primeiro conto, intitulado “Transferência”, eu queria saber tudo sobre o Boaventura. Ele é um motorista de transfer e integrante de uma quadrilha que aplica golpes nos turistas que chegam ao aeroporto Fiumicino, em Roma. Não é de conversa, dirige em uma velocidade muito alta, xinga os pedestres e fala no celular enquanto dirige. Eu ficava tentando identificar o que era verdade ou não, afinal de contas, como levantar tantas informações a respeito de alguém se esse alguém não é nada cordial? Também gostei muito de conhecer o Gianlucca, de “Sejamos todos gays”, e de acompanhar o drama da “louca da Fontana de Trevi”, do texto “Fonte da loucura”. Só para citar alguns exemplos.
“Acho que esse é um dos pontos positivos do livro, porque as pessoas vão tentar adivinhar o que é real e o que é ficcional, e acho que isso torna a leitura ainda mais divertida. Sobre Boaventura, ele foi a primeira pessoa com a qual tive contato, e ele realmente era bem antipático. Essa parte é completamente verdadeira. Mas essa personalidade dele me incomodou muito, então procurei justificar esse jeito grosseiro através de uma história. É verdadeira? Que eu saiba não”, diz Furlan, que deu o protagonismo da maioria de seus contos para pessoas comuns. Transitam por eles guias turísticos, garçons, guardas, artistas de rua, funcionária de trem e muitos outros tipos humanos.
Daniel Furlan é especializado em cinema. Escreve sobre filmes e séries e roteiriza vídeos e curta-metragens. É um estudioso e praticante da arte do storytelling. E não é a primeira incursão dele na literatura. Já publicou crônicas em coletâneas e assina como coautor do livro “Momentos da rotina” (Porto de Lenha Editora). “De primeira viagem: personagens da Europa” vai ser lançado na próxima quarta-feira, às 20h, no Instagram do autor (@_danielfurlan), e o exemplar físico já está em pré-venda no site da editora e em lojas, como Travessa, cultura e Amazon. Quem preferir a versão em eBook, ela está disponível na Amazon e no site da Chiado Books.
Marisa Loures – Por que transformar as histórias vividas na sua viagem em contos? Quando deixou o Brasil, o livro já havia sido idealizado? Pergunto isso porque acredito que viajar já com essa perspectiva muda seu olhar e a maneira como lida com as pessoas que encontra pelo caminho.
Daniel Furlan – Eu sempre fui apaixonado por contar histórias, e essa viagem foi uma das maiores aventuras da minha vida, então eu sempre desconfiei que iria registrá-la de alguma forma, mas não saí do Brasil sabendo que escreveria um livro ou algo do tipo. A ideia surgiu após a viagem, mais especificamente no avião que me trouxe de volta. Minha namorada estava dormindo, e eu estava com aquele sentimento nostálgico, então a ideia veio nesse momento de solidão criativa. Na mesma hora, peguei um dos meus cadernos de ideia, que sempre me acompanham, e comecei a listar as pessoas com as quais tive contato durante a viagem. Posteriormente criei os contos a partir de traços das personalidades, de comportamentos que observei ou de histórias que ouvi. Hoje sinto que foi um processo muito natural.
– Foram 20 dias conhecendo vários lugares do velho continente. Viajar pela Europa era um sonho desse jornalista juiz-forano. Qual o lugar mais interessante que conheceu? Foi desse lugar que mais tirou histórias para contar?
– Paris, sem dúvidas. Digo que é uma cidade mágica, porque sempre vi a capital francesa em filmes, então já tinha uma conexão muito forte com os monumentos. Além disso, é uma junção de elementos históricos com uma modernidade que faz a cidade funcionar muito bem, apesar do excesso de turistas. E o melhor é que Paris tem uma diversidade de pessoas incrível, não por acaso foi a que rendeu mais histórias.
– E você teve contato com mais de cem pessoas, passou por vários lugares. Qual foi a técnica que utilizou para apurar suas histórias?
– Não acho que apurei, no sentido jornalístico da palavra. Acho que tive uma observação natural e humana, sem preocupações. Muitas das pessoas representadas no livro eu nem tive a oportunidade de conversar. Contudo, pude reparar em trejeitos e acontecimentos que me fizeram criar histórias para elas. Acho que um mérito foi me lembrar desse tanto de gente, porque no caderno de ideias eu tinha mais de 200 pessoas, mas nem todas renderam histórias que me agradaram, exatamente porque eu não havia tido muito contato ou tinha observado por pouco tempo.
– Seu livro traz 60 contos semificcionais. Tem o seu favorito?
– O livro é muito experimental. Eu resolvi brincar com pessoas reais, com as palavras e com os meus pensamentos, então criei contos de todos os tipos. Tenho alguns favoritos, mas no momento o predileto é “O silêncio dos insolentes”. Primeiro, porque o título já é uma referência cinematográfica, segundo, porque se passa em um dos lugares mais encantadores, a Capela Sistina. Além disso, é um conto de fantasia baseado em um acontecimento que me impressionou. Os guardas da Capela Sistina gritam o tempo todo pedindo silêncio. Achei aquilo bem assustador e incoerente, então tentei criar uma história igualmente assustadora e fora da realidade.
– Aliás, você é praticante da arte do storytelling. Ama contar histórias. Quais são os elementos de uma boa história?
– Eu acredito que boas histórias são feitas de bons personagens, e acho que o livro é a prova disso. Mas não é só isso. Uma história precisa ter obstáculos e conflitos consistentes, internos e externos, e soluções viáveis para esses problemas. Contar uma história é um processo de mudança de status, então você precisa desafiar seus personagens, mas também permitir que eles evoluam.
– E por falar em favoritismo, simpatizei com Gianlucca, de “Sejamos todos gays”. É um texto escrito em primeira pessoa. Você está nele. Mas é uma semificção. Quais, das 11 informações descobertas naquele papo de 15 minutos, são verdadeiras? Todas? Nenhuma?
– É curioso, porque nesse conto eu utilizo minha profissão para justificar as informações, mas eu não cheguei a conversar com ele. Eu o ouvi apenas batendo um papo com outros turistas e depois escrevendo algumas palavras de revolta em cartazes. A partir disso fui montando uma imagem na minha cabeça. Mas confesso que o que mais me impressionou naquele senhor foi o impacto visual que tive quando o avistei. Ele estava no meio de uma manifestação só com jovens e com uma bandeira LGBTQIA+ nas costas. Foi uma surpresa extremamente positiva e emocionante.
– Muitos dos seus personagens são pessoas comuns. Guias turísticos, garçons, motorista de transfer… Essas são as melhores fontes para boas histórias, não é?
– Com certeza. Essas pessoas movimentam o mundo de todas as formas possíveis, inclusive nas boas histórias. O livro é uma expressão bem clara dos meus pensamentos políticos e sociais, por isso dei espaço para quem eu acho que merece espaço. Muita gente vive falando que são os grandes empresários que movem o mundo, e eu discordo plenamente. Quem move o mundo são os trabalhadores que ganham pouco, trabalham muito e ainda assim conseguem propagar o amor e a empatia. Acho que a maioria dos personagens do livro é assim, e aqueles que não são recebem críticas e sofrem com as consequências nos próprios contos.
– E você é um jornalista especializado em cinema. Qual dessas histórias daria um bom roteiro de um filme?
– Um dos meus contos favoritos é um que chama “Luz que nunca vai embora”, exatamente porque acho muito cinematográfico. Além de ser muito visual e ter referências a filmes e bandas pelos quais sou apaixonado, é uma história de amor que tem pontos de virada surpreendentes e um elo muito forte entre as personagens. Acho que funcionaria como um filme independente de baixo orçamento, feito para agradar jovens adultos apaixonados (hahahaha).
– Faz planos na literatura? Como pretende colocar seu livro na rua?
– Como deve ter reparado, não sou uma pessoa de fazer muitos planos. Hoje em dia eu tenho dois planos de vida: trabalhar com o que gosto e contar histórias. Ambos envolvem a literatura, então possivelmente vou lançar mais livros. Por enquanto, contudo, ainda não tenho nada muito estruturado, pois acho que no momento preciso dar uma atenção ao “De primeira viagem”. É um projeto de vida que surgiu de forma inesperada, mas que já trouxe muitas coisas boas, até porque ele só nasceu graças ao apoio de muitas pessoas queridas que contribuíram com o financiamento coletivo da obra. Após esse processo de divulgação e feedback dos leitores, possivelmente vou começar outro processo literário, pois me diverti muito e consegui criar histórias. Ou seja, consegui colocar em prática meus dois grandes planos de vida. Espero continuar assim, mas sempre de uma forma natural e divertida.
“De primeira viagem: personagens da Europa”
Editora: Chiado Books (204 páginas)
Autor: Daniel Furlan
Lançamento: 7 de outubro, às 20h, no Instagram do autor (@_danielfurlan).
Trecho do conto “Transferência”
Por Daniel Furlan
“Trocadilhos são jogos de palavras feitos a partir de relações gramáticas óbvias, toscas, irônicas ou até mesmo verdadeiras. Normalmente eles não despertam gargalhadas efusivas nas pessoas, mas podem arrancar expressões de desprezo e leves sorrisos. Aqueles envolvendo nomes próprios e sobrenomes costumam ser os mais boçais e vazios, mesmo quando retratam a realidade, como no caso de Boaventura.
Você já pode imaginar os mais diversos trocadilhos feito a partir do nome deste cidadão italiano, e ao fim desta história vai entender o quanto eles representam bem o cotidiano dele e da maioria das pessoas com quem convive diariamente.
Residente em Roma, Boaventura é um italiano de 34 anos, responsável por levar, diariamente, dezenas de turistas do aeroporto Fiumicino ao centro da icônica capital italiana e vice-versa. Há onze anos Boaventura dirige os pequenos ônibus chamados transfers de uma maneira bem peculiar e aventureira (estou me controlando).
O motorista mora próximo ao aeroporto e acorda por volta do meio-dia, um horário adequado, tendo em vista que trabalha no turno da tarde e precisa de apenas alguns minutos para chegar à garagem onde ficam os ônibus.
Boaventura trabalha 8 horas por dia e faz, em média, duas viagens de ida e volta com o transfer. Conhecido pela pontualidade, ele possui outras características mais marcantes para os passageiros.
Boaventura dirige em uma velocidade muito alta, xinga quaisquer pedestre ou motoqueiro, não conversa com os passageiros e está sempre falando ao celular enquanto conduz o veículo. Para sorte dele, os turistas não costumam entender as conversas e evitam reclamar, dando muita liberdade para o cultivo desse hábito.”