Affonso Romano de Sant’Anna: “A vida é um escândalo”
O poeta tinha 17 anos. Saiu de Minas Gerais, levando consigo alguns escritos, e foi parar no Rio de Janeiro. O jovem Affonso Romano de Sant’Anna queria mostrar seus poemas para Carlos Drummond de Andrade. Recuou. Não teve coragem de chegar perto do grande autor modernista. “Isso remete a um respeito que a pessoa tem pelo poeta. Ele causava uma reverência”, diz o mineiro de Belo Horizonte que publicou o primeiro livro aos 18 anos. “O desemprego do poeta” retrata seu inconformismo com a situação do poeta e com o período em que vivia. Tornou-se um dos intelectuais mais influentes do país. Escreveu à época de Murilo Mendes, Clarice Lispector, Pedro Nava e continua produzindo ativamente.
Fechou 2017, ano em que completou 80 anos de idade, enviando para as prateleiras o poético “A vida é um escândalo” (Rocco, 96 páginas), obra que reúne poemas inéditos que celebram seu octogésimo aniversário. Também publicou o “Quase diário: 1980 – 1999 (L&PM, 416 páginas), livro no qual revisa sua história e comenta sobre encontro com personalidades, além da trilogia “Nova história da arte” (Unesp, 96 páginas), “Artificação: problemas e soluções” (Unesp, 96 páginas) e “Redefinindo centro e periferia” (Unesp, 120 páginas). Nas três publicações, ele reflete sobre a morte da arte, a insignificância de certas obras, o sujeito na pós-modernidade, a crise do conceito político de esquerda/direita, Michel Foucault, dentre outros assuntos.
“Sou um clássico, tenho mais de 60 livros publicados. É muito livro, né? Tive contato com Drummond e com a Clarice, Murilo Mendes e vários autores modernistas. Passei pela Geração de 45, pelas vanguardas, vim por aí afora e até pela poesia marginal. Desta maneira, sou mais ou menos um contemporâneo de todos”, comenta o escritor mineiro, que, neste bate-papo, falou sobre o contato diário que ele trava com a morte e sua relação com escritores principiantes. Colocando-se sempre como um observador sagaz do cotidiano, também refletiu sobre o Brasil de hoje, voltando a “Que país é este?”, pergunta que ele escolheu há quase quatro décadas para dar título a uma coletânea de poemas que dão um panorama crítico da sociedade brasileira sob a égide da Ditadura Militar.
Marisa Loures – É muito comum pensarmos que, aos 80 anos, chegamos à estagnação. A vida é um escândalo aos 80 anos?
Affonso Romano – A vida é um escândalo. Resolvi escrever esse livro por várias razões, entre elas, certa proximidade que a gente tem com a morte, uma conversa normal com a morte, como se fosse uma amiga sua. Há vários poemas que dão a sensação de vivido.
– E como Affonso Romano de Sant’Anna lida com a passagem do tempo?
– Quando escrevi a tese sobre Carlos Drummond de Andrade, tinha 30 anos. Estava preocupado com a questão do tempo, a passagem do tempo, como é que as pessoa vão se modificando. Aí essa tese retrata mais ou menos o que eu via naquele tempo. Era uma espécie de prenúncio do que eu iria ver, e agora estou me aproximando da morte. A morte é algo normal.
– “A vida é um escândalo” fecha com versos que dizem assim: “Há certas coisas/ que a poesia pode falar./ Há certas coisas/ de que só a poesia pode falar/ Há certas coisas/ que nem a poesia pode falar”. Somente a poesia tem a força para retratar esse escândalo que é a vida aos 80 anos?
– Essa frase – “A vida é um escândalo” – é de Bartolomeu Campos de Queirós, um autor mineiro bem conhecido. Quando eu era adolescente, tinha 16, 17 anos, escrevi um livro chamado “O desemprego do poeta”. A poesia existe desde sempre, existe desde a antiguidade. Esse livro é uma espécie de contagem regressiva das coisas que vivi.
– Por falar em “O desemprego do poeta”, em 2012, conversamos sobre a comemoração dos 50 anos de lançamento desse seu primeiro livro. Você comentou que a vida literária mudou muito de lá para cá, que aumentou incrivelmente o número de autores. Esse aumento é positivo? Há bons autores surgindo?
– É um pouco complicado, porque apareceram as redes sociais. Elas são fenômenos que cruzam a literatura de certa maneira. Hoje há alguns autores que são muito famosos, mas não tenho a menor noção de que eles existem. Eles vendem livros, mas não existem literariamente falando. A literatura está passando por uma expansão muito saudável e, ao mesmo tempo, meio condenável.
– Já vi você contar sobre sua tentativa de conhecer Carlos Drummond de Andrade, aos 17 anos. Você foi ao Rio de Janeiro, levando textos seus para que ele os visse, mas não teve coragem de chegar perto dele. Você fala sobre o respeito que o escritor principiante tinha pelo poeta. Como é a relação, hoje, entre o escritor que está começando e um autor já consagrado?
– De vez em quando, chega um autor principiante, com 20 anos de idade, perto de mim, começa a conversar e eu fico pensando: “Esse menino tem 20 anos, 17 anos, não viu nada. Ele ainda vai viver muita coisa”. Olho para essa pessoa com certa tranquilidade. É preciso olhar para esses jovens com certa candura.
– “O desemprego do poeta” retrata seu inconformismo com a situação do poeta e com a época. E por falar em frustrações com a época, o Brasil vive um momento muito conturbado politicamente. Pegando emprestado o título de um poema seu, “Que país é este?” em que a gente vive? Como o poeta se coloca neste cenário?
– Sou do tempo do Lacerda, sou do tempo do Getúlio. Eu vi Getúlio, eu vi Getúlio!!! Eu tinha 6 anos de idade e desfilei para Getúlio, de maneira que tenho um passado. E quando você olha o Brasil de hoje, você se pergunta “que país é este?”, e se dá conta de algo incrível: o país nunca foi nem pior nem melhor. Aliás, cada vez piora mais. Há um livro que costumo citar que se chama “Ficando para trás”, de um americano chamado Fukuyama (Francis Fukuyama). Esse livro trata exatamente dos países do tipo do Brasil e de outros da América latina que vão ficando para trás. Os países europeus estão à frente, e eles conduzem a bandeira do progresso.
– Esse episódio com Getúlio Vargas entra no livro “Quase diário”, publicado pela L&PM?
Estou com mais quatro volumes de “Quase diário”. Vou tentar publicar em breve. É a vida de um escritor, como o escritor viveu, os contatos que ele fez. As coisas que ele foi realizando na vida dele. Claro que entram cruzamentos mais notáveis.
– O ano de 2017 foi de muita produção. Affonso Romano é um escritor que produz compulsivamente?
– Agora estou numa outra fase. Estou na fase de fazer um balanço na vida, olhar o passado e rever certas coisas. O que eu tinha que fazer, já fiz.
“A vida é um escândalo”
Autor: Affonso Romano de Sant’Anna
Editora: Rocco, 96 páginas
“Quase diário: 1980-1999”
Autor: Affonso Romano de Sant’Anna
Editora: L&PM, 416 páginas