Em estreia na literatura, Antonio Gasparetto Júnior recorre à subversão para pensar outras realidades possíveis

Por Marisa Loures

05/01/2021 às 07h00 - Atualizada 04/01/2021 às 22h30

Antonio Gasparetto Júnior é autor de vários livros acadêmicos, e, em sua primeira obra literária, a proposta é explorar situações do cotidiano sob abordagens pouco usuais – Foto Divulgação

Escolhi começar a leitura de “Contos subversivos” (Thoth Editora, 126 páginas) pela história do Papa Bestial que assombrava o mundo. Fui até ele intrigada com o título, “Bestial”, e curiosa depois de ler o prefácio do escritor e professor Daniel Giotti de Paula. “Em ‘Impasse’, ‘Bestial’ e ‘Crise’, na melhor tradição de Machado de Assis e Lima Barreto, o contista desnuda a política como ela é, mas não devia ser: um jogo agonístico por poder”.

Ninguém queria ser o papa 666. Ele seria “apenas o primeiro de uma era de devastação e perversão”. Os fiéis começaram a abandonar a Igreja Católica, o discurso de muitos ficou inflamado e houve quem defendesse que a igreja deveria assumir sua feição demoníaca. Aquela situação possível, porém não imaginada por mim, foi me prendendo até o desfecho, o qual, como intencionava o autor, causou em mim certa inquietação. O mesmo senti quando li, por exemplo, “Libido” (o personagem é um jovem atormentado pelo desejo sexual, e o psicólogo deu a ele o diagnóstico de dependência aguda de prazer de relacionamento com mulheres) e “Impasse” (Uma cidade foi arrasada por uma forte tempestade, e a correnteza do rio rompeu a ponte, única ligação entre os dois lados do município. A partir daí, começa uma disputa ferrenha na câmara dos vereadores.)

PUBLICIDADE

“Essa é uma das situações improváveis, porém possíveis que imaginei. Talvez hoje o número 666 não tenha tanto impacto mais nas relações culturais de hoje, mas essa simbologia já foi muito explorada na literatura, em filmes e na música nas décadas passadas. Durante cinco anos da minha vida, eu fui redator de um grande site de conteúdo educacional da internet, o Infoescola, e eu escrevia muito sobre a história e a biografia dos papas. A Igreja Católica possui um registro de todos eles, que seguem uma numeração cronológica. Já são algumas centenas deles que ocuparam a liderança da instituição, então associei essas duas coisas. Nunca havia visto quem se perguntasse como seria ser o papa número 666 da história, logo, o que apresento é uma dessas possibilidades”, conta Antonio Gasparetto Júnior.

O autor é pós-doutorando em História pela USP, doutor, mestre, bacharel e licenciado em História e bacharel em administração pública pela UFJF. Tem todo um currículo na área acadêmica que justifica os vários livros, além de artigos, que já lançou. Todos acadêmicos. Quase nos últimos dias de 2020, ele estreia na literatura, entregando-nos esses “Contos subversivos”.  E é isto o que ele ambiciona com eles.

“Desejo que o leitor e a leitora se incomodem com a leitura dos contos. Acredito que não seja possível passar imune pelos textos, haverá alguma identificação emocional ou racional com algum dos contos. Por isso eu espero que o incômodo com algumas situações indigestas estimule a reflexão, enriquecendo a crítica sobre a realidade e a pluralidade da vida.”

Marisa Loures – Quais são as inquietações levadas para esses “Contos subversivos”?

Antonio Gasparetto Júnior- Comecei a escrever “Contos subversivos” em 2015, motivado pela pluralidade da própria vida. O livro reúne uma série de situações possíveis, porém não prováveis em contextos imaginados. Por isso eles subvertem nossas expectativas, ao mesmo tempo em que induzem inevitavelmente à reflexão. O que fiz, então, foi reunir inquietações causadas por vivências com possibilidades alternativas no decorrer de cinco anos, dando a elas abordagens críticas sobre nossas realidades.

– Em “Libido”, o personagem é um jovem atormentado pelo desejo sexual. O psicólogo deu a ele o diagnóstico de dependência aguda de prazer de relacionamento com mulheres. Em outro conto “Impasse”, temos uma crítica política. Uma cidade foi arrasada por uma forte tempestade. A correnteza do rio rompeu a ponte, única ligação entre os dois lados da cidade. A partir daí começa uma disputa ferrenha na câmara dos vereadores. Sua proposta é explorar situações do cotidiano sob abordagens pouco usuais. Como é seu exercício de subversão? Por que subverter?

Subverter é pensar que outras realidades são possíveis. Seus desfechos podem trazer conforto ou não. Mas, de todo modo, a vida é construída por um conjunto de imprevisibilidades aleatórias. Nos meus contos, procuro estimular a reflexão para além das situações relatadas em cada um deles, mas a reflexão mais abrangente sobre a própria vida e nossas escolhas. Não estamos amarrados a futuros pré-definidos, cada simples ação abre espaço para inúmeros caminhos, como indivíduo ou como sociedade. Então me dediquei a detalhes que podem abrir novos horizontes de eventos nas alegorias criadas para refletir criticamente sobre nossa existência.

– Sua formação e sua experiência profissional justificam os livros e os artigos acadêmicos que já publicou. São dez obras lançadas, sendo esta a primeira de ficção. O que achou desse flerte com a literatura?

Sempre fui um leitor compulsivo, os livros sempre preencheram a minha existência. Por consequência, comecei a escrever muito cedo, em um blog pessoal na internet. Antes de me formar profissionalmente, já havia desenvolvido a aptidão por produzir textos e semear ideias. Acredito que o somatório dessas minhas vivências me colocou invariavelmente no caminho da docência e da pesquisa acadêmica. Assim, a leitura e a escrita criativa se tornaram parte do meu ofício, o que o torna muito mais prazeroso. Escrever poemas e contos foi algo que acompanhou todas essas etapas, mas só agora senti que era o momento de consolidar uma publicação nesse sentido, o que tem sido muito gratificante. Há na literatura uma liberdade muito maior que na escrita acadêmica para expressar ideias, já que podemos nos beneficiar da ficção, do irreal e do abstrato abrindo as portas para uma reflexão criativa.

– Há escritores que, quando começam a escrever, têm tudo planejado. Já outros pegam uma ideia quase fetal e se lançam ao desafio da escrita. Como você cria?

Misturando um pouco de cada coisa. Quando comecei a escrever o primeiro conto de “Contos subversivos”, era uma ideia quase fetal, eu não sabia ainda sobre todas as situações que escreveria. Eu imaginava como seria a composição de um futuro livro, mas as ideias para cada conto foram reveladas para mim pela vida. Acho que a inquietação de pensar em como as coisas são e como elas poderiam ter sido é inerente a todas as pessoas, mas sou muito atento a detalhes, coisas que passam despercebidas, geralmente, e me marcam e me fazem pensar a respeito. Pequenos atos e ideias do cotidiano que podem resultar em eventos e consequências bem mais amplos. Foi em cima disso que criei esses contos, especificamente.

– E por que escolheu o gênero conto para estrear na literatura?

Particularmente, por ser mais breve tanto na escrita como na leitura. Nos últimos cinco anos, estive muito dedicado à escrita profissional, acadêmica, em livros e artigos, o que demanda muito tempo e muita dedicação. Amo o que faço, então escrever sempre foi uma constante. Mas eu não queria parar de escrever literatura por causa do trabalho. Desenvolvo um romance há anos também, mas é uma escrita mais complexa e mais demorada, demandando mais tempo. Os contos são independentes, o leitor ou a leitora pode escolher a ordem que quiser dos dez textos, subvertendo o próprio livro. Essa era uma ideia também. Nesse sentido, consegui concluir os contos primeiro.

– No prefácio, Daniel Giotti de Paula faz associações, aponta características em comum entre seus contos e a obra de grandes nomes, como Machado de Assis e Lima Barreto. Diz que você o fez se reencontrar com “titãs da ‘pequena prosa’”. Os autores com os quais ele o compara são referências para a sua literatura? Você também enxerga as associações que ele fez?

O conteúdo continua após o anúncio

Com certeza, Machado de Assis e Lima Barreto são referências da literatura que fizeram parte da minha vida, me construindo como leitor e como escritor. Convivo com seus textos desde muito jovem. No entanto, seria muita ousadia me comparar com esses gigantes.

– E como é receber uma crítica como essa já na estreia na literatura?

Daniel é um grande amigo e essa gentileza de me associar a nomes como Machado de Assis e Lima Barreto me emocionou, sou muito grato por isso. Mas reconheço a limitação do meu lugar na literatura. Por ora, espero que os contos incomodem e instiguem a reflexão.

Sala de Leitura – Toda sexta-feira, às 11h35, na Rádio CBN Juiz de Fora (FM 91,30)

“Contos subversivos”

Autor: Antonio Gasparetto Júnior

Editora: Thoth (126 páginas)

 

Marisa Loures

Marisa Loures

Marisa Loures é professora de Português e Literatura, jornalista e atriz. No entrelaço da sala de aula, da redação de jornal e do palco, descobriu o laço de conciliação entre suas carreiras: o amor pela palavra.

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade pelo seu conteúdo é exclusiva dos autores das mensagens. A Tribuna reserva-se o direito de excluir postagens que contenham insultos e ameaças a seus jornalistas, bem como xingamentos, injúrias e agressões a terceiros. Mensagens de conteúdo homofóbico, racista, xenofóbico e que propaguem discursos de ódio e/ou informações falsas também não serão toleradas. A infração reiterada da política de comunicação da Tribuna levará à exclusão permanente do responsável pelos comentários.



Leia também