Bárbara Simões: “Temos que nos olhar no espelho, e já passou da hora”
1822. Dia 11 de março, meses antes de o Brasil ter declarado, oficialmente, independência de Portugal, nasceu Maria Firmina dos Reis. Filha de mãe negra e pai branco, ela prestou concurso, tornando-se professora antes da promulgação da Lei Áurea. Também se fez escritora. Contribuía ativamente com os jornais de São Luís do Maranhão, e, com a publicação de “Úrsula”, livro considerado precursor da temática abolicionista, é considerada a primeira romancista do Brasil. Essa é a história real da protagonista do livro “Firmina” (Malê, 220 páginas), romance que Bárbara Simões, professora da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora, lança aqui na cidade nesta quarta-feira (4), às 19h, na Arteria.
A vontade de ficcionalizar a vida dessa mulher que fez da literatura sua arma, mas que acabou esquecida pelo cânone literário, surgiu entre os anos de 2012 e 2014. Bárbara fazia uma pesquisa na Biblioteca Nacional, nesse período, quando começou a imaginar Firmina “andando pelas ruas, falando e se colocando”. “Depois, a crise de nosso país em 2016 me deu outros elementos. Foi aí que concebi e escrevi a história, um pouco sobre o que foi e um pouco sobre o que pode ter sido”, conta a autora, que nos mostra, em seu texto, que a história de sua personagem caberia, perfeitamente, nos dias atuais.
“’Firmina” é uma narrativa híbrida, que pode ser lida tanto em perspectiva histórica quanto biográfica. Reconstruindo com precisão a ambientação social e psicológica que fundamenta e configura o universo mimético vivido pelas personagens, e propondo uma trama complexa de viés tipicamente romântico, Bárbara nos oferece uma história instigante e que nos leva a refletir. Ao retratar os dilemas e conflitos internos vividos pela protagonista, uma jovem professora engajada na luta abolicionista que se apaixona por um deputado branco defensor da manutenção do sistema escravagista, a autora explora a dimensão humana de Maria Firmina dos Reis, afastando-se, assim, de perspectivas mitificadoras e deificantes frequentemente atribuídas à sua figura”, afirma, no prefácio de “Firmina”, o sociólogo Rafael Balseiro Zin.
Nesse bate-papo que tivemos para esta coluna, Bárbara Simões explica “por que é importante publicar um romance como esse, justo em 2019”, indagação lançada por Rafael Balseiro; revela qual é o diferencial da obra de Maria Firmina dos Reis em relação a outros textos abolicionistas publicados à época e fecha nossa conversa reivindicando o fim do racismo dissimulado que ainda impera no Brasil. “Temos que nos olhar no espelho, e já passou da hora.”
Marisa Loures – O que é ficção e o que são dados biográficos nessa obra?
Bárbara Simões – Retirei da biografia de Firmina e dos jornais que circularam em São Luis, na segunda metade do XIX, todos os fatos, personagens e acontecimentos que formam o palco onde Firmina se movimenta. O resto, inventei. Há lacunas enormes na biografia de Firmina. Minha história não é uma biografia, mas uma ficção. Como toda ficção, é também baseada em fatos reais.
– Maria Firmina caiu no esquecimento durante algum tempo. E, no texto de apresentação, Rafael Balseiro Zin diz que a trajetória intelectual dela, bem como o conjunto de sua biografia, vem despertando um crescente interesse por parte das novas gerações de leitores. O que vem provocando essa mudança?
– Acredito que o movimento de repensar o cânone literário, que tem a ver com o movimento que começa no fim do século XX e que o teórico Bhabha chamou de DissemiNacao. As minorias, antes silenciadas na narrativa nacional, começam esse processo de querer narrar também suas histórias, esquecidas ou suprimidas no processo de construção de identidade nacional. Então, esse interesse está ligado hoje à força crescente dos movimentos e a essa reescritura que temos que pensar da história do Brasil.
– Estão dando a ela o lugar que merece na nossa literatura?
– Creio que sim, mas ela ainda é muito desconhecida do grande público. Uma figura interessante, ela merecia ser mais conhecida, e espero que o romance ajude.
“A escravidão, considero a maior questão nacional não superada, e falar dela é necessário em 2019. O país esteve sempre dividido, e acho que o livro toca nesse ponto, e muitos diálogos parecem, de fato, atuais. Pouco avançamos.”
– Vou lançar a mesma pergunta de Rafael Balseiro: “Mas por que publicar um romance como esse, justo em 2019?”
– Porque, nos tempos de hoje, torna-se óbvio que muitos problemas não foram superados e permanecem como assombração. A escravidão considero a maior questão nacional não superada, e falar dela é necessário em 2019. O país esteve sempre dividido, e acho que o livro toca nesse ponto, e muitos diálogos parecem, de fato, atuais. Pouco avançamos.
– Ela era mulher e negra. Era uma intelectual, professora, escritora. Tornou-se a primeira romancista do Brasil com o lançamento de “Úrsula”. No livro, ela fazia uma crítica à escravidão. Como os negros são retratados por ela?
– Este é o grande lance de Maria Firmina. Ela não segue na linha dos abolicionistas da Corte, que usavam como principal argumento o medo. O escravo havia sido embrutecido pela escravidão e tinha que se tornar livre, ou mataria o senhor. Firmina vai em outra linha. O negro é irmão do branco, e, portanto, não pode ser escravizado. Nesse sentido, utiliza a religião cristã como argumento. Por outro lado, assume o ponto de vista do negro, em diversos momentos de sua principal obra, o romance “Úrsula”, e narra através de uma das personagens a experiência da middle passage (travessia do Atlântico dentro do Navio Negreiro) de forma inédita em nossa literatura.
– Como ela conseguiu ter voz? Como a sociedade recebia o fato de uma mulher e, ainda por cima negra, conseguir destacar-se como intelectual?
– Ela publica o primeiro romance de forma anônima (“por uma maranhense”), mas depois todos sabiam da autoria e a reconheciam como escritora, professora, autora de textos em jornais. Pergunta muito difícil. Em um meio onde poucas mulheres escreviam, é realmente admirável.
– Vivemos em uma época em que são grandes as reivindicações por políticas afirmativas para o povo negro. Das situações vividas por Maria Firmina e levando em consideração a luta dela, o que, na sua opinião, ainda reverbera nos tempos atuais?
– No Brasil, vivemos um racismo dissimulado, próprio e característico de nossa forma de ser e estar no mundo. Acho que a grande reivindicação que temos que fazer – e estamos fazendo, apesar de todas as dificuldades dos tempos atuais – é deixar escancarar o que sempre se escondeu. Temos que nos olhar no espelho, e já passou da hora.
Sala de Leitura – Sábado, às 10h15, na Rádio CBN (91,3 FM)
“Firmina”
Autora: Bárbara Simões
Editora: Malê (220 páginas).
Lançamento
4 de dezembro, às 19h, na Arteria (Rua Chanceler Oswaldo Aranha 535 – São Mateus).
Trecho de “Firmina”
Por Bárbara Simões
Eu, se pudesse me mudar, não sei, mas gostaria de não ter tido
pés tão flutuantes. Embora eu sempre tenha gostado da sensação
da areia correndo sob meus pés na praia do Cumán, e esta é apenas
mais uma das minhas contradições; a vida é uma mentira, e eu sou
só mais um pedaço da realidade. Então. Se pudesse, teria pisado
mais firme, e meus joelhos talvez não estivessem tão estropiados
nesses tempos do agora. Mas o fato é que vivi nas giragens, e cá
estou como posso ir sendo: reclamar de leite derramado a uma
altura dessas é bobagem.
Aprendi com o passar dos anos a suportar minha melancolia,
e sempre me equilibrei nas minhas movências, mas nunca entendi
o amor. Não sei o que significa ser amada. Você pode ter muitos
amigos, passar dias a fio em saraus e encontros, ser convidada para
jantares com pessoas excelentes, viver cercada de boa gente que lhe
ouve as opiniões e as aprova na maioria das vezes. E, ainda, você
pode ter muitos alunos ou filhos do coração. Como a Nhazinha,
ou a Sinhá, minhas meninas. A Rosa. O Benedito. Eles podem dizer
que gostam de você, que a admiram, que a senhora é uma excelente
mestra e mamãe. Estimada. E tudo pode parecer ou ser verdade,
o que no fim dá no mesmo. Ainda assim, não sei o que é o amor.
Amor é uma coisa que nunca passou perto de mim, ou que nunca
cheguei a entender. Alguém entende o amor?