Táscia Souza fala sobre ’99 receitas’, livro nascido do blog Hupokhondría

Por Marisa Loures

03/07/2017 às 16h03 - Atualizada 03/07/2017 às 16h06

Táscia Souza está entre os autores do livro “99 receitas”, lançado com apoio da Lei Murilo Mendes

Quando procuramos o blog Hupokhondría (www.hupokhondria.com) no Google, uma frase está ali, provocante, jogando-nos na cara a realidade nua e crua: “Alguma coisa você tem.” Temos. Certamente! Como diz o jornalista Marcus Martins, dá medo de se identificar, porém, o receio maior é de não se encontrar em nenhuma narrativa. Gustavo Burla, José Eduardo Brum e Táscia Souza são os responsáveis por esse diagnóstico e, desde 2008, entregam-se ao desafio de criar contos sobre doenças do mundo, sejam elas físicas, sociais, emocionais e literárias. O projeto amadureceu, foi para outros formatos e acabou de ir parar no livro “99 receitas” (Funalfa Edições, 240 páginas), publicado com recursos da Lei Murilo Mendes.

Segundo o trio, os textos estão organizados quase na mesma ordem em que foram levados para o site, e a assinatura posta, somente, no final de cada conto, serve para aguçar a curiosidade do leitor em relação à autoria. No entanto, para quem conhece os três, essa tarefa não se torna tão difícil assim. No texto de apresentação, Malu Ribeiro já nos dá um caminho. “Há uma harmonia dissonante entre o humor ácido de Gustavo Burla, os trançados narrativos e hipertextuais de Táscia Souza e a dramatização desconfortável de José Eduardo Brum”, escreve a professora, doutora em Letras.

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“Nosso diagnóstico é de que alguma perturbação, alguma idiossincrasia, alguma doença, dessa doença metafórica que a gente trabalha, todo mundo sofre, todo mundo sente. O homem é o responsável pelas suas próprias perturbações, pelos seus próprios problemas, pelos seus próprios sentires. Isso é para gente muito claro, e isso se reflete nos nossos textos”, avalia Táscia, antecipando que o Hupokhondría estreia, dia 4 de agosto, no Espaço Compartilha, a peça “Educandário São Bernardo”, com direção de Marcos Araújo e texto de Gustavo Burla. No elenco, estão Táscia Souza e a colunista deste blog.

Nosso diagnóstico é de que alguma perturbação, alguma idiossincrasia, alguma doença, dessa doença metafórica que a gente trabalha, todo mundo sofre, todo mundo sente. O homem é o responsável pelas suas próprias perturbações, pelos seus próprios problemas, pelos seus próprios sentires. Isso é para gente muito claro, e isso se reflete nos nossos textos.

Marisa Loures – O que trazem estas “99 receitas”?

Táscia Souza – Essas 99 receitas para Hipokhondríacos são uma compilação dos cinco primeiros anos do nosso blog, que já tem nove anos de existência. São uma coletânea de alguns dos contos de que a gente mais gosta, alguns dos quais a gente achava que tinha mais a dizer para estar num livro nesse momento. Não é que sejam os melhores, mas são os que achamos que podiam ser mais significativos para serem compilados nesse livro. Todos eles, assim como todo o projeto, falam de algum tipo de doença. Apesar de o título trazer um trocadilho e de muita gente ter perguntado se eram receitas de culinária, essas 99 receitas fazem referência a receitas médicas, porque nosso projeto está todo relacionado a doenças. Não são necessariamente doenças físicas, podem ser doenças psicológicas, emocionais, sociais e literárias. Há sempre algum tipo de perturbação, algum tipo de ironia.

– Por que 99 e não cem receitas?

– Como somos três, a gente queria um número que fosse múltiplo de três, e 99, por si só, era um número perturbador tanto quanto a natureza do projeto, porque todo mundo faz esta pergunta: Por que 99 e não cem?

– No texto de abertura, vocês dizem: “Por isso dilatamos nossos limites e buscamos a cura para tudo em qualquer lugar.” É uma busca que tem fim? Vocês encontram a cura?

– Não encontramos. Acho que, como todo tipo de medicamento, ao mesmo tempo em que ele propicia um alívio imediato, ele também, se usado em excesso, se não for tomado com moderação, na dosagem certa, também pode ser um vício, pode causar um mal. Derrida (Jacques Derrida) tem um texto que se chama “A farmácia de Platão”, que ele usa o termo “phármakon” para falar da questão da palavra, que ele usa tanto a cura quanto o vício, quanto o veneno. A gente não encontra a cura, é um alívio imediato, mas que está sempre precisando de mais e mais alívio.

 

Tenho uma relação problemática com a própria palavra, tenho muitos personagens que sofrem por não poder escrever, e isso é uma inquietação constante na minha vida. O José Eduardo, realmente, é muito dramático. A gente brinca que ele é melodramático, e isso é o reflexo que ele traz da vida dele. O Gustavo, para quem conhece, é uma pessoa ácida na vida.

– Na apresentação do livro, a Malu Ribeiro diz que há uma “harmonia dissonante entre o humor ácido de Gustavo Burla, os trançados narrativos e hipertextuais da Táscia Souza e a dramatização desconfortável de José Eduardo Brum.” Cada um tem um estilo diferente. Esse caminho foi percorrido de forma consciente?

– Não foi uma coisa consciente, foi uma descoberta ao longo do tempo, cada um foi encontrando seu próprio estilo à medida que ia escrevendo. Por exemplo, ela fala da minha relação com o hipertexto, porque a escrita, o próprio ato de escrever, é algo que me preenche e que me incomoda muito ao mesmo tempo. Tenho uma relação problemática com a própria palavra, tenho muitos personagens que sofrem por não poder escrever, e isso é uma inquietação constante na minha vida. O José Eduardo, realmente, é muito dramático. A gente brinca que ele é melodramático, e isso é o reflexo que ele traz da vida dele. O Gustavo, para quem conhece, é uma pessoa ácida na vida. Isso transparece no texto. Por diagnosticar isso, a gente brinca que sou lírica, o Gustavo é épico e o José Eduardo é dramático. Já fizemos alguns exercícios de tentar subverter isso, de um tentar escrever no estilo do outro, mas a gente acaba voltando para suas próprias origens, para aquilo que se sente confortável.

– Apesar dessa diferença de estilo, em alguns momentos vemos, por exemplo, a Táscia Souza um pouco mais ácida…

– A gente, às vezes, se mistura mesmo. Tem alguns textos do Gustavo, por exemplo, com finais felizes e textos de amor que fazem a gente se sentir impactado. “É o Gustavo Burla mesmo, fazendo um texto tão fofinho?” E aí ele quebra com a expectativa do leitor. Algumas pessoas podem começar a ler e falar assim: esse texto é da Táscia, e, na verdade, não.

– A Malu Ribeiro também fez uma observação sobre o fato de você ser mulher e saber assumir novas posições e desbancar preconceitos. O seu lado mulher interfere nas suas produções? Percebo muito seu lado jornalista de política nelas…

– Tem o lado jornalista de política, mesmo, inclusive, acho que, quando falo de doenças sociais, é uma questão que levo para o projeto. Acho que um pouco, sim, levo um lado feminino. Não sei se isso é um preconceito da nossa sociedade, de achar que tem um lado feminino, que o lado sensível, necessariamente, é o lado da mulher. Até o fato de os meninos falarem que sou a lírica do grupo é porque os meus textos, a priori, é que trariam maior carga de sensibilidade. Mas, às vezes, tento romper com isso, usar palavras, usar uma linguagem que, a princípio, não entenderiam como sendo uma linguagem feminina, para romper com essas barreiras de achar que existe uma linguagem feminina e uma linguagem masculina.

– Quando comecei a ler um texto, em primeira pessoa, do José Eduardo, “Fé cega e vida amolada”, fiquei pensando se ele seria biográfico. Depois vi que o personagem é feminino. O que tem de biográfico nos textos de vocês?

– Acho que alguns textos, têm, sim, muita carga biográfica, mas transformada. Aquilo é mastigado digerido e transformado em outra coisa. Não somos nós, o José Eduardo não é esse personagem. Essa característica de ter personagens femininos é muito comum nos textos dele, assim como tenho muitos personagens masculinos, sobretudo escritores.

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– Quais são os outros projetos do Hupokhondría?

O projeto mais imediato é a peça “Educandário São Bernardo.” Curiosamente, escrito também sobre doença, e é também autobiográfico, porque traz uma questão de doença na família. Fora isso, temos um grupo de estudos narrativos que se chama “Estudos matemáticos”. O Gustavo brinca que, na verdade, lá ninguém sabe fazer conta. Tem esse nome porque a gente faz alguns exercícios de escrita coletiva. A gente fez um exercício de roteiro uma vez que um começava a história, e o texto ia rodando, passando uns pelos outros. A gente fez todo um exercício de análise combinatória para ver como seria a distribuição desse texto. Quebramos muita cabeça e acabou que o grupo ficou batizado assim por causa disso. Esse grupo também está com um projeto futuro de lançamento de algumas produções que a gente fez de pesquisa de personagem, de produção de contos.

Trechos de “99 receitas”

“‘Preciso parar de fumar’, disse e acendeu um cigarro. A fumaça subiu preguiçosa, sensual como uma serpente encantada. Em meio à névoa cinza-e-branca ele observou a reação dela no outro lado da mesa, misto de censura e depravação. Tinha um tesão inconfesso pelos dedos longos dele segurando o fumo, seus lábios displicentes soprando a fumaça para o alto. ‘Preciso parar de fumar’, repetiu, sentindo na boca o gosto enjoado de tabaco e cerveja. O estômago revirou-se junto com a cabeça; achou que ia vomitar. ‘Por que não para?’, desdenhou ela. ‘Por que adoro’, respondeu enquanto aspirava o ar contaminado em volta deles. ‘Eu detesto’. Deu um sorriso que a fez revirar os olhos. ‘Paro quando você aceitar namorar comigo.'” Táscia Souza, em “O câncer”.

“Bom dia, seu passaporte, por favor. Por favor, senhorita, passaporte. Senhorita, preciso do seu passaporte, por favor. A senhorita possui algum problema de audição? Eu posso chamar um… Não? A senhorita me escuta? E entende minha língua? Então a senhorita poderia me emprestar seu passaporte, por favor? Como não? Isso aqui é o balcão de imigração, a senhorita só entra no país se o passaporte for carimbado. A senhorita me ouviu? Então por que não se mexe? A senhorita não tem passaporte, é isso? Então me mostre a carteira de identidade que vou ligar para a central de controle e veremos o que podemos fazer. Não tem carteira de identidade? Tem os dois? Um e outro? Peraí, detesto mímica, vamos com calma.” Gustavo Burla, em “Desidentificação”.

“Eu nasci um problema, já vim com defeito de fábrica. Parece que Deus quis me desafiar. Já fui considerada o anticristo. O melhor elogio foi besta do apocalipse. É forte, não? Por enquanto, estou vivendo. Não respiro direito, tenho pé torto, minha coluna também é torta, e sofro de dores no corpo inteiro. Em casa, vivo renegada, ninguém conversa comigo, sou uma exilada perante minha própria família. Não encostam em mim, porque pensam que vou contaminá-los com a minha deficiência. É nessa hora que percebo que são eles os doentes. Não estudei o quanto queria, mas já desisti dessa ideia, porque sou a aberração na sala. Chamo mais atenção do que a burrice de meus professores.” José Eduardo Brum, em “Fé cega e vida amolada”.

 

“99 receitas”

Autores: Gustavo Burla, José Eduardo Brum e Táscia Souza

Editora: (Funalfa Edições, 240 páginas)

 

Marisa Loures

Marisa Loures

Marisa Loures é professora de Português e Literatura, jornalista e atriz. No entrelaço da sala de aula, da redação de jornal e do palco, descobriu o laço de conciliação entre suas carreiras: o amor pela palavra.

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