Ao mestre com carinho

Por Nara Vidal

18/10/2020 às 06h55 - Atualizada 15/10/2020 às 14h37

Eu sempre entrego o meu texto da coluna na quarta anterior.
Então, aqui estou escrevendo e pensando que hoje, enquanto você lê este texto, é o meu aniversário, e que isso tem uma importância ínfima e só no meu pequeno núcleo mesmo.
Porém, no decorrer da semana, passaremos pelo dia 15 de outubro, um dos mais importantes do nosso calendário.
Eu cresci com pais professores. História e Geografia. Foram meus professores, fato que muito impressiona meus filhos. Chegam a sentir pena de mim quando me imaginam adolescente tendo que lidar com tamanho fardo. Realmente, se paro e penso, a coisa não foi um mar de rosas. Meus colegas faziam piada da voz grave do meu pai e da aliança batendo na mesa a pedir silêncio. Mas as piadas não eram ofensas, longe disso.
Já a minha mãe, professora de Geografia, me tirava do sério: ela fazia a unha, secava os cabelos com secador, cantava e até dançava na sala de aula. O constrangimento era unicamente meu porque o resto da sala admirava a vitalidade e a alegria daquela mulher inteligente que era o centro das atenções e que, por pura sorte, era minha mãe. Lembro-me das nossas brigas antes de descer a rua para o ginásio, às segundas-feiras, dia de arguição. Eu, distraída em não fazer nada, a pensar na vida, não tinha lá o desejo de estudar para provas. A mãe sempre teve a ambição dos estudos para as três filhas. Hoje eu entendo que aquela insistência era uma ferramenta, uma escolha que ela nos dava para sermos pessoas pensantes, que fizessem alguma diferença e para que se defendessem sozinhas. Apesar das nossas discussões às segundas, quando ela entrava na escola ela se transformava. Estava onde sempre quis estar. Minha mãe nasceu para ser professora, não tenho dúvidas. Muito nova ganhou uma bolsa de estudos num excelente colégio em Juiz de Fora. A família não conseguiria pagar por uma escola de tanto prestígio. A mãe sabia que aquela era uma oportunidade única. Ela se formou e foi trabalhar. Aos cinquenta e sob incontáveis sacrifícios foi fazer a sonhada faculdade de Geografia, mas já tinha um conhecimento infinito quando chegou lá.
No entanto, o talento maior dela como professora era ver a pessoa através do aluno. Ela tinha compromisso com a pessoa. Por isso, não tolerava preguiça de quem tinha privilégios. Por isso brigava tanto comigo quando eu não entendia o tamanho da minha oportunidade que era estudar. “Saber não ocupa lugar”, ela repetia o dia todo.
Mas me ofende uma ideia que se propaga há tanto tempo de que professores são pessoas que têm um dom e pronto. Não podemos seguir pensando que, apesar de fazer um trabalho com inexplicável amor, esses profissionais estão à disposição gratuitamente. E sabem, aqui na Inglaterra, professores não ganham um salário invejável, não. É sempre pouco pela importância que têm. Mas qual a razão de ganharem menos que um deputado, por exemplo? Se são professores de escola pública são servidores como os políticos. Onde está o argumento disso? E não me venham com a conversa de que não há dinheiro no mundo que pague o que faz um professor. Há sim. Há dinheiro e há recurso, mas estão sendo usados equivocadamente e sem respeito aos contribuintes que têm direito à Educação, mas vão lá e pagam tudo de novo e particular quando o dinheiro dá. A Educação dentro das escolas precisa envolver inclusive o debate político para que esses erros parem de se repetir, que o dever de pagar impostos seja vinculado ao ato de questionar quem recebe quanto e o porquê.
Agora, querem saber o que não tem preço? Existe uma escola em Guarani que tem o nome da minha mãe. Orgulho maior que isso eu não acho que consiga sentir.
Deixo registrados minha admiração e meu respeito a três professoras em especial: Sônia Aglio que me ensinou a ler – me lembro bem da mágica que foi juntar letras. Dona Aparecida Gaudereto, que colocava música e nos fazia escrever de forma criativa. Meirinha, professora de Química no segundo grau e que me disse para eu não me preocupar com a matéria dela. No lançamento do meu primeiro livro, lá ela estava com um abraço e as palavras: “eu te falei para não se preocupar com Química.” Há mestres que enxergam a pessoa escondida no aluno.

Nara Vidal

Nara Vidal

Nara Vidal é escritora. Nascida em Guarani, Zona da Mata mineira, em 1974, há quase duas décadas vive em Londres. É autora de mais de uma dezena de títulos, a maioria deles publicados em português. Dentre eles, os infanto-juvenis "Dagoberto" (Rona Editora) e "Pindorama de Sucupira" (Penninha Edições), os de contos "Lugar comum" (Passavento) e "A loucura dos outros" (Reformatório), e o romance "Sorte" (Moinhos), premiado com o terceiro lugar no Oceanos de 2019.

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