Joãozinho vai votar

Por Nara Vidal

25/09/2022 às 07h10 - Atualizada 23/09/2022 às 14h01

O brasileiro é simpático, generoso, adora uma caridade. Eu ouvia muito isso nas primeiras décadas da minha vida. Cheguei a achar que fosse verdade. Até eu conhecer o Joãozinho, menino criado para valorizar a família e Deus, como qualquer pessoa de bem. Joãozinho vai crescer com medo do escuro, de Exu, de macumba, candomblé, pai e mãe de santo, mas sem medo da fome, esse fantasma agarrado ao pé da cama que Joãozinho divide com mais dois irmãos.
Joãozinho, menino de sorte, conhece uma família generosa. A mãe dele trabalha na casa dessa família. Só podem ser abastados porque pagam, vejam, duas vezes pela mesma coisa. Se a escola pública não é boa o suficiente, a família rica não vai reivindicar e reclamar e se envolver para melhorar a qualidade daquilo que é dever do governo proporcionar. Não. Ela vai mostrar o cartão de crédito, fazer dívidas, acumular boletos, mas os filhos estudam em colégio de rico. Assim, esse tipo de cidadão acredita proporcionar à família uma espécie de escalada social. Esse tipo dá emprego pra mãe do Joãozinho. Mas, um dia, Joãozinho vai ter um futuro melhor; vai frequentar lugar de rico e se dar com ricos que vão sempre rir do Joãozinho, porque Joãozinho nunca vai conseguir acompanhar as viagens ao exterior e às praias. Quando criança, Joãozinho não vai ter criados porque já é criada a sua mãe. E a sua mãe não tem a carteira assinada, já que ela acredita que seja sinal dos tempos o sinal de desrespeito e retrocesso nos seus direitos. Quando a família do Joãozinho adoece, eles não querem ir ao SUS porque merecem mais – o patrão da mãe mesmo já disse! Merecem um tratamento particular. Onde já se viu ter que entrar na fila, esperar como todo mundo para ser atendido? Não. Joãozinho e sua família são especiais por merecimento, mas não conseguem ser tratados como vips. A família para a qual a mãe do Joãozinho trabalha tem um problema diferente: ninguém consegue, por mais que tente, dobrar lençóis. Já tentaram, coitados, entre eles e nunca está bom, sempre torto, sempre inferior à dobra que sabe fazer a mãe do Joãozinho.
E para não fazerem um trabalho malfeito, deixam com quem sabe fazer com excelência. Em retorno, um muito obrigado mesmo de coração, permeado por um sorriso branco com todos os dentes pagos em vinte prestações. E não é só: a mãe do Joãozinho que faz cama como ninguém ganha as comidas que a outra família não aguenta comer, as roupas que já são velhas, mas de marca, uma cesta linda de Natal que tem até vinho. Brasileiro é generoso, não há como contestar. Enquanto tudo isso acontece, com sorte, Joãozinho está na escola. Não a mesma da, praticamente, segunda família, mas outra, a pública onde Joãozinho come biscoito e mingau quando era pra comer arroz, feijão e salada. Com sacrifício vai falar inglês e vai ser patrão. Ainda que não chegue a ser mesmo patrão porque o inglês dos meninos ricos é praticado com viagens, cursos nos Estados Unidos, na Inglaterra, até na Austrália os ricos conseguem chegar.
E Joãozinho cresce com uma raiva danada. Joãozinho quer ser premium, quer ser especial como não foi, quer excluir e quer ser incluído. Vai trabalhar numa empresa e vai chegar a gerente porque tem ambição. Joãozinho vai se casar, fazer dívida para uma festa onde não pode fazer feio e vai receber aquelas pessoas caridosas do seu passado. O ex-patrão da sua mãe vai dar ao Joãozinho e à noiva uma geladeira que Joãozinho vai custar a encher. Os filhos do ex-patrão vão dar aos noivos, a quem chamam amigos, um espelho mágico, chamado TV de oitenta polegadas. Quando os filhos nascerem, Joãozinho não vai ficar satisfeito com a ideia de uma escola pública, um serviço único de saúde, com uma bicicleta para chegar ao trabalho. Joãozinho vai querer mais é um carrão pra colocar uma gasolina dentro dele que custe o fígado e o churrasco de domingo, onde aprendeu direitinho a falar mal da Venezuela, das bichas e dos pretos da cidade. Joãozinho também é preto, mas preto clarinho porque tem português na família; português, esse povo tão sem mestiçagem! O filho do Joãozinho vai aprender a ser homem macho como ele sempre foi. A filhinha do Joãozinho vai ser uma princesa. E Joãozinho vai se recusar a comprar comida dos produtores locais porque Joãozinho vai ter carro pra ir ao supermercado que vende até brinquedo, joias e perfume. Joãozinho vai ser chic como sempre mereceu. Joãozinho vai virar um cidadão do bem que não tem tempo pra ver o seu entorno, que não vai aceitar migalhas do governo, que vai ter ambição e uma empregada a quem trata como se fosse da família, que vai comprar um apartamento com varanda gourmet, brinquedoteca pros filhotes para quem ele se mata de tanto trabalhar para pagar escola e plano de saúde duas vezes como bem aprendeu com a classe média. Joãozinho se mata de sacrifício tentando ser rico. Mas antes de morrer, Joãozinho vai votar pra presidente.

Nara Vidal

Nara Vidal

Nara Vidal é escritora. Nascida em Guarani, Zona da Mata mineira, em 1974, há quase duas décadas vive em Londres. É autora de mais de uma dezena de títulos, a maioria deles publicados em português. Dentre eles, os infanto-juvenis "Dagoberto" (Rona Editora) e "Pindorama de Sucupira" (Penninha Edições), os de contos "Lugar comum" (Passavento) e "A loucura dos outros" (Reformatório), e o romance "Sorte" (Moinhos), premiado com o terceiro lugar no Oceanos de 2019.

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