Lucrécia
Chega de notícia ruim! Basta de pesadelo! Ninguém aguenta mais essa realidade sombria.
Vamos escapar para um lugar melhor. Hoje vou falar de arte, que tal? Não quero estragar o domingo de ninguém, afinal hoje é descanso sagrado, dia de ficar com a família. Então, o tema vai ser poesia!
“O rapto de Lucrécia” é um poema escrito por William Shakespeare. É um poema belíssimo, assim como considero bela a imagem de Tiziano que ilustra o texto de hoje. Arte não tem necessariamente relação com prazer ou contentamento, e beleza é sempre um conceito subjetivo. O que é bonito para você, pode ser feio para mim. A arte, generosamente, prevê o perturbador e o que conforta em iguais valores. Eu digo tudo isso porque “O rapto de Lucrécia” é mesmo uma beleza de poema. Mas há nele um problema fundamental. Para quem não conhece, a narrativa fala sobre a belíssima mulher de Colatino, Lucrécia, que está na sua casa quando o amigo do marido, o Tarquínio, o Soberbo, decide ir lá verificar com os próprios olhos e artifícios, se Lucrécia era mesmo essa mulher casta, perfeita, de inquestionável índole cuja fama se espalhou nas redondezas. Imaginem que o sórdido do Tarquínio tenta suas investidas em Lucrécia que, estarrecida, diz não. Isso. Lucrécia diz não. Ainda assim, Tarquínio continua sua investida na cama de Lucrécia, cujo marido não está. Lucrécia propõe argumentos, tenta formas de persuasão, fala sobre consequências do ato violento, usa palavras, pede respeito. Não adianta. Tarquínio vai lá e estupra Lucrécia. E então, qual a razão da tradução brasileira se chamar “O rapto de Lucrécia” e não “O estupro de Lucrécia”, tal qual o original “The rape of Lucrece”? Será que o nosso país trata de estupro de forma relativa? Sempre entendi que um crime dessa natureza é de uma violência tão profunda que marca a própria identidade da vítima. Mas voltando para a poesia que hoje é domingo, dia de alegria. Lucrécia não é raptada, portanto esse argumento é inválido. Ela está na própria casa que é invadida pelo criminoso que vê no corpo de Lucrécia um convite para o abuso. O abrandamento da violência na tradução do título me incomoda muito. Não é rapto, sequestro, é estupro o que sofre a personagem shakespeariana. Vocês imaginem que um poema publicado em 1594 ilustra o escândalo que dominou as redes sociais essa semana. Como pode uma obra do século dezesseis ser tão atual? Além do tratamento humilhante recebido por Mariana Ferrer durante o julgamento que, entendam, não é dela, é do seu algoz, tivemos que testemunhar o exemplo mais claro do patriarcado e do machismo na sua forma mais suja e asquerosa. O advogado do sujeito rico que estuprou a vítima mostrou fotos de Mariana onde ela faz poses sensuais, usa roupas curtas, aparece chupando o dedo. Aquele advogado vê no comportamento de uma pessoa maior de idade e livre, um convite à violação dos seus mais íntimos direitos. Perfis no Instagram acusam Mariana de ser uma moça ambiciosa, perigosa, que “fez por merecer” o crime cometido contra ela. A ambição em homem sempre teve conotações de qualidade, nunca de ameaça. Leitores, espero que estejam me seguindo quando expresso aqui o meu completo choque ao termos que nos deparar com homens e seus machismos sórdidos que tentam de toda forma possível culpabilizar uma mulher que está no seu pleno direito de usar as roupas que quiser, de tirar as fotos que bem entender chupando o dedo ou não. Como Lucrécia, Mariana pediu ao advogado que a respeitasse, tentou não desistir das palavras. Como é possível que pessoas culpabilizem uma vítima com base no que acham do seu caráter ou da sua personalidade? Você gosta ou não da Mariana Ferrer, o fato é que ela foi estuprada. É possível que sua opinião sobre as roupas dela, as fotos dela também sejam irrelevantes diante da barbárie de um estupro. Queremos tirar as fotos que desejarmos, andar nas ruas escuras a hora que quisermos, sozinhas ou acompanhadas. Não devemos satisfação NENHUMA a homem NENHUM. Se há uma frase que minha filha nunca vai ouvir é essa: comporte-se como uma mocinha.
Desculpa. Eu estava falando de poesia, não é?