Vamos jogar

Por Nara Vidal

03/01/2021 às 06h55 - Atualizada 29/12/2020 às 22h02

Eu escrevo do passado. Do ano passado, precisamente.
É curiosa essa coisa de entregar um texto que, geralmente, trata de assuntos que podem ser atuais, semanas antes de ser publicado. É estranho, mas é ao mesmo tempo interessante. Quando você ler este texto, já teremos cruzado a fronteira tão aguardada entre 2020 e 2021. Nossos pés e mãos já tocarão em um ano novinho que nos olha e nos chama para jogar. E agora? Como lidar com um ano que, pela própria ideia de novo, nos pede esperança, fé, otimismo, desejos de bonança e saúde? Estamos machucados e nossos corpos estão maltratados, talvez mais pesados, talvez mais quebrados. Estamos mais velhos. Nossas faces se arrebentaram em novas rugas, reflexo de preocupações que nem sabíamos que tínhamos em nós. Afinal, quem poderia imaginar que durante um ano inteiro estaríamos reféns de algo que é invisível? É bastante complicado lutar contra um inimigo sem rosto, sem armas, sem escudos, sem corpo. O inimigo tem um nome, mas ele não é o único. Nós, brasileiros, temos outro inimigo. Temos que lutar contra quem ri de nós e quem nos subestima. Temos que manter a dignidade e a força para perseverar enquanto erram feio lá no planalto e nós, que tanto avisamos, catamos juntos os cacos, remendamos os farrapos.
Este ano novo que, daqui de onde escrevo, ainda é futuro virá apesar do jeito de fim de mundo que tomou conta do mundo. Você precisa ver Londres nestes tempos. Chega a arrepiar e comover. Uma cidade tão cheia, barulhenta, dinâmica, dormindo, só os fantasmas nas ruas. O final de ano vinha a galopes e junto com ele, a mutação do vírus, uma forma ainda mais rápida de contágio que o que deu início ao nosso ano pandêmico. Os ingleses estão muito acostumados com mutações de vírus assim: todo ano o da gripe vem diferente e todo ano é oferecida uma vacina às crianças e aos mais velhos para se protegerem da gripe. Os ingleses não estão assim tão assustados com a mutação do Covid. Era mesmo de se esperar, dizem os cientistas. O que assusta a gente aqui deve ser bem parecido com o que assusta você aí: emprego, educação, saúde, alimentos, moradia. Como a gente vai se virar se o ano novo não trouxer, miraculosamente, uma vida nova e a cura para o mundo todo?
A boa notícia é que, na astrologia, o ano será regido por Vênus, o planeta do amor, e nos orixás, Oxalá traz a paz e Oxum vem com mais amor e a cura de aflições. Se você não liga para “essas coisas”, deveria, já que há bons indicadores para o ano novo, e eu que não sou louca de rejeitar boa notícia. Talvez você já esteja cumprindo o plano de ter uma vida mais saudável, comer menos bobagem, se exercitar mais. Sabe, pela primeira vez eu não rio dessas resoluções de fim de ano. Ao contrário: eu as levo muito a sério. Afinal de contas, não foi fácil sair vivo do ano passado. Fomos todos rondados pela morte. Estivemos todos na sua lista macabra. Mas como era gente demais, ela acabou saltando alguns, por exemplo, eu e você. Escapamos.
Para este ano que nos olha agora e nos pergunta se queremos jogar, vou desejar mais investimento em tecnologia e ciência que, aliás, começa com o investimento na Educação, sempre ela. Vou desejar que a gente não perca a cabeça, nem a vida. Vou desejar saúde. Vou desejar que estejamos mais fortalecidos. Vou desejar.
E então, 2021, vamos jogar?

Nara Vidal

Nara Vidal

Nara Vidal é escritora. Nascida em Guarani, Zona da Mata mineira, em 1974, há quase duas décadas vive em Londres. É autora de mais de uma dezena de títulos, a maioria deles publicados em português. Dentre eles, os infanto-juvenis "Dagoberto" (Rona Editora) e "Pindorama de Sucupira" (Penninha Edições), os de contos "Lugar comum" (Passavento) e "A loucura dos outros" (Reformatório), e o romance "Sorte" (Moinhos), premiado com o terceiro lugar no Oceanos de 2019.

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