As bordas do prato

Por Nara Vidal

01/08/2021 às 07h00 - Atualizada 30/07/2021 às 18h57

Outro dia, conversando com um amigo, eu disse que há certa mineirice no inglês. Gosto de pensar que deste ponto de observação, talvez eu veja essa colocação com alguma nitidez.

Afinal de contas, quando eu fizer cinquenta anos, vou ter passado tanto tempo em Minas quanto na Inglaterra e serei assim oficializada como uma “anglo-mineira” ou um “meio-termo”. Agora, taí uma expressão que cai bem no mineiro: “meio-termo”. Outros estados da nossa nação serão perdoados por nos julgarem meio em cima do muro, meio quietos, meio comedidos, meio espertos, meio roedores de bordas, meio sonsos. Mas pulo de cima do meu muro para dizer, com certa diplomacia que somos na verdade uma gente meio “inglesa” e que, feito dizia minha mãe, “lava a roupa suja em casa”. Quando eu cheguei aqui tratei de me misturar logo com outros estrangeiros. Tinha certa dificuldade em enxergar o inglês com suas entrelinhas e suas ordens disfarçadas de bondade, recomendações e conselhos. Saí de uma casa de família inglesa e fui morar no oeste de Londres num casarão ocupado por músicos australianos, neozelandeses, sul africanos, um mexicano e uma holandesa que por acaso morava dentro do armário embutido do meu quarto. Eram quarenta e cinco libras por semana pelo armário! De lá, me lembro, saíam sons interessantes, respirações ofegantes, palavras em holandês, será? Na tal banda eu fui uma quase cantora. Fazia participações especiais em pubs porque era a namorada do guitarrista e bebia o suficiente de coragem para que um vexame desses acontecesse. Comportamento nada mineiro esse de se exibir. Um dia, cansada das músicas da banda, resolvi sair da casa. Fui morar numa área afluente no sul de Londres. Comecei a observar, mineira que sou, o comportamento inglês daquela família que me acomodava. Certa vez, o pai da casa foi promovido. Juntaram-se em volta da mesa, uma garrafa de vinho bem escolhida, brindaram, parabenizaram o rapaz e foram dormir. Numa ocasião, meu avô ganhou uma galinha numa rifa. Foi na cozinha, pegou uma faca bem escolhida, cortou a goela da pobre, cozinhou com quiabo, nós comemos, parabenizamos o cozinheiro e fomos tirar um cochilo. Vai ver isso explica o fato de eu me sentir tão em casa por aqui. E claro, há uma enorme hipocrisia nos dois. Enquanto a festa explodia dentro do rapaz da promoção e do meu avô com a galinha premiada, por fora eram pura paisagem. “Parcimônia”, diriam os dois em questão.

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Quando fui morar perto de Nápoles, depois de dois meses não aguentava mais nem ouvir e nem falar o italiano. Era tudo de uma “carioquice” sem fim: uma língua em som alto, em festa, em drama, no máximo. Uns bons meses depois retornei pra Inglaterra onde reencontrei na costa gelada, minhas montanhas silenciosas e sagradas. Claro, com o perdão dos queridos amigos cariocas, já que estereótipos são tão preguiçosos quanto os … Opa! (Uma pitada de sal, humor e perdão na leitura, por favor!)

Daqui de cima do meu muro olho Minas e Inglaterra. Não sei pra que lado pular. Talvez, quem sabe, de forma comedida eu coma as diferenças pelas bordas. Mas isso eu faço quieta.

Nara Vidal

Nara Vidal

Nara Vidal é escritora. Nascida em Guarani, Zona da Mata mineira, em 1974, há quase duas décadas vive em Londres. É autora de mais de uma dezena de títulos, a maioria deles publicados em português. Dentre eles, os infanto-juvenis "Dagoberto" (Rona Editora) e "Pindorama de Sucupira" (Penninha Edições), os de contos "Lugar comum" (Passavento) e "A loucura dos outros" (Reformatório), e o romance "Sorte" (Moinhos), premiado com o terceiro lugar no Oceanos de 2019.

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