Democracia em dissonância cognitiva

Por Bruno Stigert, advogado e professor da Faculdade de Direito da UFJF. Mestre pela UERJ e doutor pela UFF

29/09/2021 às 07h00 - Atualizada 28/09/2021 às 18h16

Na próxima semana, a Constituição brasileira completará 33 anos. Uma trajetória ainda curta, dificílima e que passa por seu teste mais difícil até aqui: encarar um governo que tenta sistematicamente “pilhar” seu texto, distorcendo seu sentido, os fatos, promovendo aumento da polarização e da intolerância. O texto de hoje é uma reflexão sobre esse contexto, refletido a partir dos conceitos de (1) dissonância democrática cognitiva, (2) saciedade semântica constitucional e (3) recrutamento para o radicalismo.

Em interessante estudo, Rachel E. Hoffman (Determining Who is Vulnerable to Radicalization and Recruitment) sugere que indivíduos vulneráveis ao extremismo não são necessariamente ignorantes ou ingênuos. São pessoas motivas por redes sociais (família, amigos ou comunidade global) e que se sentem isoladas no interior da sociedade em que vivem. Anseiam por propósito e empolgação. São sujeitos atravessando conflitos de identidades, buscando reputação ou satisfazer uma compulsão por ação. Muitos são escolarizados, porém subutilizados, nutrindo uma falsa noção de segregados por seu status social. Sentem-se maltratados por seus pares e pelo governo.

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Nos últimos 20 anos, o Brasil transitou entre forças políticas progressistas e conservadoras, cada qual recrutando seus extremistas. A novidade, no entanto, é a potencialização da incapacidade de distinguir o que é real do que não é, conjuntura amplificada pelas redes. É aqui que entra a dissonância democrática cognitiva, traduzida como espaço de diálogos dentro da sociedade e entre esta e o Estado, com propósito de tomar as decisões sobre os rumos da comunidade. Nesse cenário, de reprodução de mentiras, evidencia-se a tensão psicológica gerada pela informação que contradiz as crenças, acompanhada de uma conduta de banalização do argumento oposto. Quem nunca foi chamado de comunista, socialista ou petista, simplesmente por expor alguma contradição do governo atual?

Motivadas por mentiras, que são financiadas até com dinheiro público, pessoas fomentam o debate público com ideias totalmente fora do lugar: (i) a eleição de 2018 foi fraudada, por isso a demanda por voto impresso. Ora, nunca se provou a fraude e as urnas são auditáveis; (ii) “se gritar pega centrão, não fica um meu irmão”. O atual governo entregou a Casa Civil ao centrão, mas agora é diferente; (iii) o ativismo do STF tem a intenção de prejudicar Bolsonaro. O que dizer da validação feita pelo STF do grampo da conversa entre Dilma e Lula? Não foi ativista? Estes são apenas alguns exemplos de dissonância democrática nos debates atuais, que vão de Ferrari de ouro do filho de Lula, passando por máscaras chinesas contaminadas para realização da invasão comunista, chegando ao famoso vídeo da deputada Carla Zambelli dizendo que a filha da Dilma era dona da Havan. Conheça-te a mentira e ela te aprisionará!

A essa altura alguém discorda que nossa democracia brasileira está em dissonância cognitiva e que ela é fomentada por recrutados que viram no atual governo um espelho de suas pré-compreensões?

Outro fenômeno possível de ser identificado em democracias cognitivas dissonantes, com considerável nível de extremismo, é o que denomino de saciedade semântica constitucional. Todos são intérpretes da Constituição (inclusive o povo), mas o STF é seu guardião (Art.102), o último intérprete (não o melhor). Nos últimos meses, em quase todas as aparições, o atual presidente usou os termos: “quatro linhas da Constituição” e “liberdade e/ou liberdade de expressão”. A saciedade semântica é um acontecimento fruto da repetição de uma palavra que leva a sensação de perda de significado, arruinando a relação com o objeto que a palavra se refere.

A liberdade no Estado Constitucional de Direito só pode ser uma liberdade responsável, com respeito aos projetos de vida diferentes, com agentes públicos que não endossam concepções religiosas e morais fortes na política. Aliás, não é liberdade de expressão ofender e ameaçar, o discurso de ódio não tem proteção constitucional! Por fim, jogar nas “quatro linhas da CF” é respeitar os Poderes constituídos, inclusive o livre exercício do Poder Judiciário (Art.85, CF), cumprindo suas decisões.

Enfim, vivemos um período de democracia dissonante cognitiva, no qual crenças radicais saíram do armário e reencontraram ecos no espaço político. Nesse contexto, as mentiras viram argumento e o recrutamento de radicais é potencializado. Essa paisagem ganha contornos dramáticos pela repetição vazia de termos importantes como liberdade. Aliás, repetir palavras vazias é estratégia conhecida, tal como defendia Goebbels, ministro de Hitler “uma mentira repetida mil vezes torne-se verdade”.

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Bruno Stigert

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