Lá como cá

Por Carlos Eduardo Paletta Guedes

19/03/2023 às 07h00 - Atualizada 17/03/2023 às 19h21

Em agosto de 2020, neste mesmo espaço, escrevi um artigo intitulado “De quem é a última palavra?”, no qual tratei do problema de Hobbes: qualquer órgão criado para controlar o soberano acaba se tornando, ele mesmo, o poder supremo, caindo num argumento de regresso infinito. Eis a grande dificuldade: onde colocar o ponto final, aquele que dá a última palavra numa comunidade política?

Em Israel, essa discussão está ocorrendo diante dos nossos olhos. A Suprema Corte israelense tem algo em comum com a americana e brasileira: está entre as cortes mais poderosas do mundo. Em outros países, o órgão máximo do Judiciário tende a fazer mudanças modestas e tecnocráticas. Em Israel (como aqui no Brasil), o Judiciário tem a última palavra.

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As mudanças propostas pelo governo de Netanyahu fortaleceriam a autoridade do Legislativo, o Knesset, que já é bastante poderoso, pois lá o sistema é unicameral com um presidente somente figurativo (a coalisão majoritária escolhe o primeiro-ministro). Se as mudanças forem aprovadas, o Knesset também ganharia o poder de anular as decisões da Suprema Corte e seria alterada a forma de escolha dos juízes, hoje feita por meio de um comitê de nove membros composto de advogados e juízes, dando ao governo a maioria nesse colegiado.

Curiosamente, foi o Knesset que, em 1992, aprovou a lei que daria o poder da palavra final ao Judiciário. Naquele momento, nos debates parlamentares, um dos legisladores críticos ao projeto, Michael Eitan, disse: “Isso não é democracia, isso é usurpação”. O Ministro da Justiça de então, Dan Meridor, defendeu a alteração sob o argumento da necessidade de “pesos e contrapesos”, acrescentando: “somente aqueles que veem a democracia como a lei da maioria, e nada mais, pensam que isso não seja democracia”. A lei acabou sendo aprovada e, agora, três décadas depois, está sob intenso debate, gerando manifestações que dividem a nação. A situação está tão grave que o presidente Isaac Herzog disse em transmissão para todo o país, na quarta-feira passada, que “qualquer um que pense que uma genuína guerra civil, com vidas humanas, seja uma linha que jamais poderia ser atingida, não tem ideia do que está falando”. É o Judiciário no centro de um debate crucial para o futuro de um povo.

Lendo as notícias sobre Israel, percebe-se o quanto o tema é importante e ultrapassa fronteiras. Não tenhamos dúvidas: parte considerável de nossa população concorda com as palavras de Eitan e vê o nosso STF como usurpador. Outra parte vê o Judiciário como um contrapeso necessário aos arroubos dos demais poderes. O problema de Hobbes reaparece diante dos nossos olhos.

Nosso sistema foi desenhado com o Judiciário como dono da palavra final. Em sua difícil missão, ele deve buscar legitimidade na boa técnica jurídica, distante das paixões políticas de ocasião. Por outro lado, os ministros deveriam ser escolhidos entre os juristas de notável saber jurídico, não entre os amigos – e advogados – do “rei”. E o Senado deveria executar uma verdadeira sabatina. Se cada um cumprisse bem seu papel, o argumento da usurpação seria esvaziado. Mas, na medida em que os poderosos preferem agir segundo seus próprios interesses momentâneos, estaremos sempre à beira dos conflitos. Seja em Israel, seja no Brasil.

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Carlos Eduardo Paletta Guedes

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