Não somos bárbaros

Por Carlos Eduardo Paletta Guedes

29/05/2022 às 07h00 - Atualizada 27/05/2022 às 18h22

A ideia de justiça ocupa um lugar central tanto na ética quanto na filosofia jurídica e política. Nós aplicamos essa ideia às ações individuais, às leis e às políticas públicas e pensamos, em cada caso que, se são injustas, há uma razão forte para rejeitá-las.

Classicamente, a justiça era contada como uma das quatro virtudes cardeais (e às vezes como a mais importante das quatro); nos tempos modernos, o filósofo John Rawls a descreveu como “a primeira virtude das instituições sociais”.

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A evolução dessa ideia mostra uma mudança grande na forma como a compreendemos. Na obra Ilíada, de Homero, justiça não é a principal virtude. Essa honraria cabia à “areté”, que geralmente se traduz como virtude ou excelência. Lá, a todo momento, a justiça é associada à ideia de vingança. Nas escrituras hebraicas, assim como nos textos mesopotâmicos mais antigos, quando direitos eram violadas, a justiça era feita por retribuição ou vingança. A lei de Talião (“olho por olho, dente por dente”, que se repete no Levítico 24 e Deuteronômio 19) tornou-se exemplo histórico desse tipo de justiça.

Avançamos bastante desde então. Passamos a entender que a vingança não pode ser a inspiração básica das punições. Deixamos de lado a iniciativa privada e colocamos nas mãos do Estado o poder de punir. Como o Estado tem esse poder imenso, muitos autores liberais colocam a ideia de liberdade no centro de suas preocupações, impondo limites aos poderes estatais.

A ideia do “devido processo legal” surge nesse contexto. Não se pode punir ninguém sem que um processo seja conduzido de acordo com os procedimentos previstos nas leis. Tudo isso nos faz lembrar que é inaceitável que agentes estatais – sejam eles quais forem  ajam fora dos limites legais. O caso recente de uma “câmara de gás” improvisada num veículo que levou à morte um jovem com problemas psiquiátricos é exemplo de um abandono completo das ideias mais básicas de justiça. É como se barbárie se revelasse com toda sua violência e crueza diante dos nossos olhos.

Quando o máximo da injustiça vem justamente daqueles que devem zelar por ela, estamos em má situação. A justiça é uma ferramenta inventada e aperfeiçoada por seres humanos para que possamos bem viver em sociedade. Ela pode até falhar, mas, sem ela, não há nada em que podemos nos agarrar para harmonizar nosso convívio social. Só a justiça pode corrigir o mal que irrompe no meio de nós, lembrando-nos que, apesar de tudo e de alguns, não somos bárbaros.

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Carlos Eduardo Paletta Guedes

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