Entre o sangue e o papel

Por Carlos Eduardo Paleta Guedes

18/11/2020 às 07h00 - Atualizada 17/11/2020 às 20h51

Há uma tensão entre a política entendida como carisma e a política do dia a dia da administração pública. A primeira se faz da luta que contrapõe diferentes visões de mundo que ambicionam obter o controle da segunda, vindo a gerir então uma burocracia cada vez mais complexa e sofisticada.

Vejamos dois setores que, de certa forma, exemplificam o domínio da técnica e da complexidade: Direito e Economia. A formação jurídica, historicamente, sempre forneceu quadros para a administração pública que, na modernidade, tornou-se um imenso cipoal de regulamentação minuciosa e fragmentada. Mais recentemente, os economistas assumiram papel de destaque, sendo impossível pensar em decisões governamentais que não passem por uma análise econômica rigorosa e especializada. O professor de Harvard, Mangabeira Unger, chega a lamentar, num memorando sobre o currículo jurídico brasileiro, a perda de espaço do Direito para a Economia na relevância do debate público em nosso país.

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Ciúmes profissionais à parte, esses dois campos do saber praticamente dominam a gestão estatal, tomando decisões com base em linguagem e conhecimentos específicos, como se a técnica jurídica fosse o campo da moral e da justiça (bem) e a expertise econômica fosse o campo da verdade (bom). No limite, as decisões técnicas beiram a despolitização, pois seguem uma lógica racional que se pretende científica.

O problema é que a política como carisma (uma percepção de Max Weber) nasce de outras esferas: intuição, comunicação e, no limite, explosão de paixões. Justamente o que falta ao mundo dos requerimentos, jurisprudências e planilhas. Se a política carismática sem limites leva a uma fé perigosa na perfeição do líder, a política da técnica parece carecer de convicção e propósito, reduzindo a vontade popular a um conjunto de regras monótonas que anestesiam as diferenças. A questão é a difícil tarefa de compatibilizar esses dois fenômenos.

Paixões sem limites costumam acabar em tragédias. Macbeth inebriou-se de tal forma pela ideia de poder que acabou cumprindo sua própria profecia, caindo diante de MacDuff. Antígona e Creonte, cada qual agarrado à sua paixão (a lei dos deuses x lei da cidade) mostraram que, onde falta moderação, sobra a desgraça. No “Terceiro de Maio, de 1808” de Goya, vemos as armas, o sangue, a morte. Por outro lado, a burocracia ilimitada leva a Kafka e seu processo sem conteúdo, sem explicações, a labirintos a perder de vista: Joseph K. diante do tribunal ou o agrimensor K. diante do castelo são seres que não conseguem escapar de um sufocamento institucional que jamais conseguirão compreender. Nas artes, temos o quadro de Pieter Brueghel, o jovem, e seu “Escritório do Advogado da Vila”, onde só o que se vê é papel, bagunça e petições. Nada que lembre paixão.

Resta, então, buscar o difícil equilíbrio entre esses dois universos tão distintos. Se a política é uma “conversação entre interesses diversos” (Michael Oakeshott), devemos sempre pensar em salvá-la das colisões violentas, adotando uma postura cética que modere os anseios da fé no líder ou na perfeição da burocracia. E isso requer, justamente, que líderes e especialistas saibam cumprir papéis bem delimitados – o que não parece ocorrer nesses difíceis tempos em que a autocontenção é vista como fracasso.

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