A cortina de fumaça e o voto impresso

Por Bruno Stigert, advogado e professor da Faculdade de Direito da UFJF. Mestre pela UERJ e doutor pela UFF

04/08/2021 às 07h00 - Atualizada 04/08/2021 às 16h35

Brasil, séc XXI, ano 21. O país e o mundo vivem o maior drama deste século. Por aqui, a pandemia levou mais de meio milhão de vidas, além de outras tantas com sequelas preocupantes. A ciência, na era da informação, sofre duros golpes. Há quem acredite mais em uma mensagem de aplicativo do que em estudos robustos, resultado de anos de reflexão crítica. Nesse cenário, surge mais uma vez a pauta do voto impresso. Após 25 anos de urna eletrônica e alternância visível de representação em todos os níveis de Governo, o atual presidente insiste no tema, a ponto de fazer declarações intimidatórias às instituições, principalmente contra o TSE e seu presidente, min. Luis Roberto Barroso. Nesta terça, 3 de agosto, disse que daria um último aviso ao Tribunal e seu presidente, não deixando claro qual seria a consequência.

Na medida em que a “CPI da Covid” avança sobre fatos e circunstâncias que apontam para uma gestão duvidosa da pandemia, o presidente parece querer jogar uma cortina de fumaça sobre ela, desviando a atenção e o foco da sociedade para o tema do “voto impresso”, norteado por um argumento retórico de fraude. Aliás, tese que ele teve oportunidade de provar até a última segunda, porém, preferiu o caminho dos vídeos de redes sociais que apontariam indícios. Foi esse o tom da prometida transmissão que comprovaria as fraudes da urna eletrônica. Pior, usou uma TV estatal para encampar projeto político pessoal, a mesma TV que prometeu extinguir e que segundo ele, são típicas de ditaduras, a exemplo da Cubana e Venezuelana. Seguimos.

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No ponto, as eleições eletrônicas no Brasil, após 25 anos, garantiram eleições sem maiores sustos. Em que pese muitas denúncias e questionamentos nesse tempo, nunca houve uma comprovação sequer de adulterações. Em abstrato, poderia perguntar a alguém que desconhece a cultura política brasileira, se acreditaria em uma vitória nas eleições presidenciais de candidato que não participou de debates e não apresentou projeto de governo.

Provavelmente a resposta seria negativa, ou você que me lê discorda? Portanto, a trajetória até aqui das eleições via urna eletrônica merecem uma boa dose de credibilidade, cabendo aos seus opositores o ônus de provar o contrário.

Espera-se, no mínimo, que os questionamentos se apresentem em materiais científicos e técnicos, não em retórica conspiratória e ameaçadora. De outra maneira, quando o chefe do Executivo dispara acusações contra as instituições e seus representantes, ameaçando o rompimento das barreiras democráticas caso sua vontade não seja atendida, parece que estamos diante de um perigoso dualismo: os que defendem a democracia e os que a odeiam, erguendo sua bandeira como meio para obtenção de fins questionáveis. Carl Schmitt, figura importante para ascensão nazista e de Hitler, descreveu muito bem como bastava “inventar” um inimigo em potencial para gerar medo e conseguir coesão social. Fraudes nas urnas eletrônicas, comunismo e socialismo são apenas alguns exemplos que movem uma quantidade considerável de pessoas na direção dessa relação amigo vs. inimigo, mas que vem diminuindo para o bem do país. A cortina de fumaça está dissipando, e quando ela se for, restará apenas luz.

O perigo ainda existe. Viraram rotina as ameaças às pessoas e às instituições. No entanto, na perspectiva da história constitucional brasileira: dos Marechais da primeira República, passando por Vargas e chegando na ditadura militar, ou seja, líderes com inclinações disruptivas, nunca nos deparamos com o Poder Judiciário tão forte e de vez na cúpula dos poderes. Não estou dizendo que isso é bom. Já falei sobre o tema aqui. Chamo atenção que nesse jogo de linguagem pautado em ameaças de não realização das eleições, algumas violações à Constituição se materializam: (i) não é Deus quem coloca ou tira o presidente do seu posto. A Soberania é do povo (Art.1, I, §1°c/c art.14, CF) e é a ele que o presidente responde. Portanto, mesmo que retórica, a afirmação de que só sairá da presidência se for vontade de Deus, nos remete a argumentos medievais e/ou totalitários; (ii) São crimes de responsabilidade atentar contra a Constituição, contra o livre exercício do Poder legislativo e ao cumprimento das leis e decisões judiciais (Art.85, II e VII).

Por fim, vale lembrar que as eleições no Brasil são auditáveis sim (um exemplo é a zerésima). O voto impresso significará o retorno do voto de cabresto, com comprovante e tudo (já que, em último caso, são pessoas que auditam). Não é essa a vontade da Constituição. Para ela o voto é secreto e universal (Art.14), constituindo uma cláusula pétrea, não podendo ser objeto sequer de emenda constitucional (Art.60, §4°, II). Para além disso, caso exista algum indício de fraude ou ofensa a soberania popular, cabe a impugnação do mandato (Art.14, §10). De todo modo, se ainda haver alguma dúvida, consulte o site do TSE e dê menos atenção as mensagens de rede social. O assunto é sério e demanda um mínimo de esforço para compreender o que está acontecendo no país.

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Fiel da Balança

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