Acorda, Val; obrigado, Jéssica!

Por Marcos Araújo

30/10/2022 às 07h00 - Atualizada 28/10/2022 às 18h32

Neste domingo tão importante para o Brasil, escolhi falar de cinema. Essa arte que usa imagem em movimento, som, luzes, cores e tudo mais que a tecnologia admite para nos arrebatar. Quem nunca chorou diante de uma cena tocante? Confesso, eu não consigo me conter. Isto é o cinema: emoção.

O que acho ser a maior dádiva dessa arte, assim como de todas as outras, é a possibilidade que ela nos concede de nos colocar no lugar do outro, de vestir a pele do outro, sentir suas dores, suas alegrias, seus sonhos, suas frustrações. Neste sentido, o cinema, além de nos comover, também serve para nos fazer refletir.

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Por meio dele, nossa visão de mundo pode ganhar mais nuances, ampliando nossa capacidade crítica para questões importantes que se referem à nossa sociedade. É neste ponto que chego ao motivo de ter escolhido falar de cinema neste dia decisivo para nosso futuro.

Em 2015, o cinema nacional nos presenteou com um dos filmes mais belos e contundentes de nossa filmografia: “Que horas ela volta”, da diretora Anna Muylaert. Sua história narra a vida de Val, interpretada por Regina Casé, uma mulher nordestina que veio para São Paulo à procura de emprego, deixando para trás a filha, Jéssica, ainda pequena. Na maior cidade do país, Val trabalha como empregada doméstica para uma família, cria Fabinho, filho do casal para quem trabalha, e mora na casa dos empregadores.

“Que horas ela volta?” é um filme bonito, mas também doloroso. Na medida certa, ele traz à tona preconceitos, escancarando o abismo existente entre as classes sociais brasileiras. Val, que é quase uma segunda mãe para Fabinho, não deixa de ser explorada sob diversos aspectos.

Seus patrões não a enxergam como ser humano. Apesar de viver na casa deles há mais de dez anos, ela não merece a sua atenção. Eles não sabem nada da vida dela, que é vista de forma inferior, proibida de sentar-se à mesa junto com eles, sendo considerada uma cidadã de segunda classe.

Mas a chegada de Jéssica, que veio para prestar vestibular para arquitetura, provoca abalos nessa estrutura. Os patrões se incomodam com a postura da moça, que tem consciência de que não é inferior a ninguém e se nega a ficar nessa posição. Jéssica rompe com os paradigmas enraizados na nossa cultura e no imaginário popular, mostrando para a mãe que ela é um ser humano tão válido quanto qualquer outro e que tem pleno direito de ocupar espaço no mundo.

Esse filme mostra um Brasil que, ao longo de muitas décadas, sempre pareceu aceitável, mas que começou a ser inaceitável quando filhos de empregadas, porteiros, motoristas e pedreiros começaram a estudar e a entender sobre o lugar que ocupam. Jéssica é a representação de cada um desses filhos que tomaram consciência da dominação e se posicionaram contra ela.

Hoje, no país, existe uma grande parte da sociedade que prefere o Brasil antes da chegada de Jéssica, mas isso agora já é impossível, porque ninguém mais vai voltar para o seu antigo lugar e, hoje, é um dia para provar isso.

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Voltando a falar da beleza do filme, cito a cena em que Val entra na piscina dos patrões, ainda quase vazia, que é uma das mais emocionantes realizadas pelo cinema brasileiro, porque é a síntese de uma revolução. É a hora de acordar, de nascer de novo. De tomar consciência de que somos mais e podemos mais. É assim que vejo essa cena: o momento de entendermos que não podemos mais aceitar que uma minoria privilegiada seja dona dos nossos corpos, dos nossos sonhos, dos nossos destinos. De compreendermos que o povo merece sim entrar na piscina e tomar o mesmo sorvete que o Fabinho!

Marcos Araújo

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