Amigo é pra essas coisas

Por Marcos Araújo

26/08/2021 às 07h08 - Atualizada 25/08/2021 às 19h23

– Alô!
– Alô! Cê viu o que tão dizendo agora?
– Para começo de conversa, quem é que tá falando? – perguntei, já que fui questionado sem mesmo saber quem estava do outro lado da linha.
– Sou eu, ora! Não tá reconhecendo minha voz? É que já começo o dia irritada e com voz embargada!
– Ah, sim! Como vai? Saudade de você, viu! E a família? Sua mãe? Tão todos bem?- pergunto, educadamente, depois de identificar que se tratava de uma amiga minha, que é professora na rede pública.
– Impossível estar todos bem com as notícias que me chegam! – bufa ela ao telefone.
– Realmente! Não tem sido fácil acordar e se deparar com tanta instabilidade. Não há psicológico que resista, né? – faço uma tentativa para apaziguá-la.
– Depois de “ideologia de gênero”, “Escola sem partido”, “Homeschooling”, cruzada “moralizante” contra linguagem neutra, agora me aparece um para dizer que a inclusão de alunos com deficiência em escolas públicas “atrapalha” o aprendizado das “crianças normais”. Isso é demais para qualquer educador! – diz, mais enfurecida ainda.
– Ah, sim, eu li sobre isso, mas o cara que disse isso não é cristão?
– Fala que é, o que torna o que ele defende uma crueldade, já que um cristão deveria estar do lado das minorias. Esse comportamento dele é de traição ao espírito cristão, pois deveria lutar por aqueles que sofrem abandono por causa de suas deficiências, e não o contrário.
– É, minha amiga, atuar na educação no Brasil nos dias de hoje não é pra principiante!
Sem dar atenção ao que eu havia acabado de dizer, ela continuou.
– É só ter boa vontade para se informar que qualquer um vai saber que a escola pública brasileira é vanguarda na questão da inclusão com a Política Nacional de Educação Especial, e também vai saber que defender a criação de escolas especiais para alunos com deficiência é um grande retrocesso – afirma ela, incisiva, como se estivesse em meio a uma assembleia.
– Concordo com você, e considero que as pessoas precisam se atentar pra isso. Não dá para fazer da escola um gueto.
– Além de cruel, essa proposta é contrária à política de inserção das pessoas com deficiência na sociedade sem que sejam consideradas um inconveniente para os demais.
– Você está coberta de razão! Dizer que esses alunos atrapalham os outros em sala de aula vai contra a psicologia moderna. Imagina como está o coração de pais e mães de crianças com deficiência numa hora dessas?
– Misericórdia! – neste momento, ela já está mais calma e volta a ter a voz no tom costumeiro.
– Desculpe, meu amigo, porque estou fula da vida e precisava colocar para fora – continuou ela, bem mais amena.
– Eu compreendo! Às vezes, também fico assim! Quando precisar, é só me ligar.
– Do jeito que o Brasil anda, vou te ligar toda hora!
– Pelo menos desabafa!
– Obrigada!
– Conte comigo e fique bem!
– Será que é possível nesse país?
– A gente tenta! – digo, tentando também me convencer, e emendo: – “Amigo é pra essas coisas”, lembra de quando ouvíamos MPB4?
– Bons tempos! Tchau e até mais!
– Abraço!

Marcos Araújo

Marcos Araújo

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