Tonto de mim mesmo
Tenho me esquecido de olhar para o céu, principalmente, à noite. Acho que, depois que a gente cresce, as pequenas brutalidades do dia a dia vão nos roubando a leveza necessária que nos impulsiona a olhar para o céu. Lembro-me de, quando criança, eu e meus amigos brincávamos na rua até depois do anoitecer. Após as brincadeiras, passávamos o tempo a olhar para cima.
Era hora de tentar identificar as estrelas, pensando no que haveria depois do brilho de cada uma, nos outros possíveis mundos existentes além delas. Era uma das maneiras de matar o tempo, enquanto nossas mães não nos chamavam para o banho e para a janta. E tinha aquela história de que, se alguém apontasse para uma estrela, nasceria uma verruga no dedo. Ora isso era motivo de muita zoação, ora era motivo de receio do surgimento de um pequeno caroço carnudo na pele.
Também não me esqueço de que, ainda quando criança, minha família costumava visitar os parentes do meu avô materno em uma área rural, na cidade de Laranjal (MG). A casa deles ficava em um lugar descampado, no meio do nada, e, naquela época, não tinha energia elétrica lá. A noite era a mais escura que já tinha visto. Dentro de casa, a iluminação era feita com lamparina de querosene. Do lado de fora, era puro breu, mas o medo da escuridão era compensado pela profundidade de um céu azul carregado e muito estrelado. Algo que nunca mais vi na minha vida, pelo menos, com aquele mesmo olhar infantil, que se deslumbrava com uma imensidão de brilhos.
Lembrei-me de uma crônica que Clarice Lispector escreveu, em agosto de 1971, no Jornal do Brasil. No texto, intitulado “O Céu”, ela se recorda de uma noite em Caxambu: “O céu, no campo, é de um azul-marinho profundo e veem-se como cristais milhares de estrelas”. Pois é, acho que meu céu de Laranjal, em muito, se parecia com o céu de Caxambu de Clarice. Fiquei feliz de pensar que tenho algo em comum com a criadora de Macabéa, que é uma das protagonistas mais surpreendentes da literatura brasileira.
Ao trazer todas essas recordações, o que quero dizer é que a nossa rotina tem exigido tanto e cada vez mais da gente, que deixamos de prestar atenção nas coisas simples, no que não precisa ser pago, no que não pede nada em troca, naquilo que nos fazia sentir um pouco mais de felicidade e ainda faz. Acabamos deixando de lado, ou para depois, mas um depois que nunca chega, porque simplesmente nossa vida virou uma profusão de tarefas e compromissos.
E, por tudo isso, e só por desaforo, hoje à noite, vou abrir a janela e olhar para o céu e, mesmo que as estrelas estejam lá ofuscadas pela iluminação pública e pelas luzes dos prédios, vou firmar minha cabeça para cima e, assim como Clarice em Caxambu, permanecer olhando para o céu até ficar tonto de mim mesmo.