Para a princesa

Por Marcos Araújo

15/05/2022 às 08h10 - Atualizada 13/05/2022 às 20h48

13 de maio, de 2022

Cara, princesa

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Escrevo esta carta como um desabafo. Sei que a senhora, como tentam nos convencer, tinha até uma boa intenção, quando, há 134 anos, assinou uma lei que libertou todo o povo escravizado do Brasil, mas acontece que aquilo que foi escrito naquele documento pouco mudou a situação. Eu também sei que, durante muito tempo, o dia 13 de maio foi uma data comemorativa, mas a realidade é que temos poucos motivos para celebrar.

A abolição até fez o nosso país sair do vexame que era manter um povo escravizado, mas, depois que a tal da lei foi assinada, todo o povo negro foi deixado abandonado nas ruas, sem ter acolhimento do Poder Público, sem ter onde morar, sem saber ler e escrever. Sim, é verdade, e sinto muito ter que jogar isso na cara da senhora, mas foi o que aconteceu. Fomos obrigados a nos recolher nos quilombos, a vivermos em condições precárias em locais distantes dos centros urbanos. Esses lugares se transformaram nas favelas, que, hoje, o mesmo Poder Público, que nos deixou ao relento, trata com desprezo. Somos marginalizados e, frequentemente, impedidos de transitar pelas áreas nobres da nossa cidade.

Esta carta, minha senhora, é para dizer, com muito respeito, que “de boas intenções”, o inferno está cheio, sabia? A senhora, que é inteligente, já deve saber disso, não é mesmo?  Sou pai de família e trabalhei a vida inteira como servente de pedreiro. Infelizmente, a vida, ou melhor, o Estado brasileiro não me deu condições de estudar. Essa profissão, que não foi escolhida por mim, e que isso fique bem claro, me foi passada pelo meu pai, que herdou do meu avô. E, apesar de todas as mazelas, foi trabalhando na construção das casas de pessoas brancas que consegui fazer o meu barraco e dar um teto para meus filhos.

Mas acontece que, hoje, com pouco mais de 50 anos, com minhas mãos calejadas, meu rosto cheio de vincos da lida debaixo do sol e do corpo franzino, não consigo mais trabalhar. Não por falta de vontade, nem de força, é porque vivemos em uma época de brutalidade. Como homem preto, sem estudo e mais velho, os empreiteiros olham para mim e dizem que já não tenho mais como dar conta do serviço. Assim, pergunto para a senhora: o que vou fazer do resto da minha vida? Eu ainda tenho um filho adolescente para acabar de criar. A senhora acha isso justo?

A minha filha mais velha conseguiu se formar na universidade. Ela virou professora. É o orgulho da nossa família e foi a primeira a tirar o diploma. Ela diz que, agora, vai me ajudar. Diz ainda para não me preocupar, porque, para ela, “há remédio para tudo, menos para a morte”. Mas ainda temo muito pela felicidade dela. Eu sei que ela vai ter que enfrentar muita coisa até conseguir chegar aonde quer.

Eu queria que a senhora soubesse que foram mais de 300 anos de escravidão, mas agora são 134 anos de uma falsa liberdade. E esta data de hoje serve mais para ser lembrada como dia de resistência do que de comemoração. Antes de me despedir, queria pedir para a senhora, de onde estiver, se poderia dar uma força para a gente. Não é possível mais que, em pleno 2022, tenhamos que ouvir que somos “macaco, preto, idiota, palhaço, ridículo, ET, inútil e pateta”. Esse não é o Brasil que merecemos, e a cor da nossa pele precisa deixar de ser o alvo. Obrigado, senhora, pela sua atenção!

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Um brasileiro

Marcos Araújo

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