Deixar as gavetas vazias não é fácil

Por Marcos Araújo

13/05/2021 às 07h10 - Atualizada 12/05/2021 às 19h46

Esta quarentena, que agora já nos dá a impressão de ser eterna, tem nos despertado os mais recônditos hábitos. Um deles é jogar coisas fora para abrir mais espaço. Mas isso, em certas situações, torna-se um sacrifício. Mais fácil é acumular. Ao abrir as gavetas, é possível encontrar um mundo de memórias cravado em papéis, metido em envelopes e enfiado em pastas.

Muitas dessas coisas a gente guarda sem mesmo saber o porquê. A explicação fica no campo das emoções, o que coloca em xeque qualquer motivo racional. Ao abrir minha gaveta, encontrei bilhetes de cinema, ingresso para o show da Gal Gosta, programas de peças teatrais, folhas com frases soltas, outras com números de telefones de quem já me esqueci, rabiscos de desenhos, marcadores de livros, trabalhos da pós-graduação, cartões de aniversário e de Natal. Minha intenção era jogar tudo fora e deixar a gaveta mais organizada, pronta para receber coisas novas.

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Mas pergunta se consegui meu objetivo. Claro que não! A maioria do que achava que iria dispensar acabou ficando no mesmo lugar, mesmo tendo a certeza de que, se algum dia precisar de fato de alguma daquelas coisas, já as terei esquecido.

E por que isso acontece? Qual a razão de ser tão difícil se livrar do que, à primeira vista, seria só peso morto? Porque cada coisa na vida faz parte de uma imensa colcha de retalhos, que é a nossa memória. As coisas não existem ali solitárias. Elas fazem parte de um contexto e não saem sozinhas da gaveta. Com elas, vêm lembranças, afetos, cheiros, reminiscências, e jogá-las fora seria como causar um desequilíbrio na harmonia das coisas.

Do pouco que consegui me livrar, houve hesitação sobre a importância de cada anotação. E, só depois da certeza de sua insignificância, uma a uma foi para a cesta de lixo: a maioria era de comprovantes de pagamentos, receitas médicas e outros papéis que perderam a validade, totalmente impessoais, desprovidos de vivências.

No meio da escrita deste texto, fiquei pensando que, em tempos de digitalização, essa mania de guardar também se estende para nossos computadores e celulares. Quantos arquivos já sem relevância devem contribuir para pesar a memória desses equipamentos! Fotos repetidas, capturas de telas, vídeos antigos, áudios de conversas casuais. Já vislumbro a dificuldade que será para escolher o que vai para o drive e o que será excluído.

O fato é que todos esses rastros da nossa memória são espelhos do que somos e do que fomos. Coisas não são só coisas. Por meio delas, traçamos nossa vida pessoal, estabelecemos relações com outras pessoas e damos corpo à nossa existência. As coisas materiais fazem parte da nossa vida e estabelecem um laço com a nossa emoção, construindo nossa personalidade, nosso jeito de ser, nossa visão de mundo.

Deixar as gavetas vazias, realmente, não é fácil, pelo menos para mim. E acredito que não sou o único. Quem sofre desse tipo de apego acaba sendo vítima dos mais insensíveis. Para terminar, vou citar Carlos Drummond de Andrade, que em seu poema “Memória” disse: “Amar o perdido deixa confundido este coração.”

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Marcos Araújo

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