Os olhos da rua

Por Marcos Araújo

11/04/2019 às 07h07 - Atualizada 10/04/2019 às 17h12

Vivemos em um tempo em que a noção de espaço público não é muito evidente. Os limites estão borrados. No Brasil, principalmente, as pessoas estão acostumadas a tratar o que é público como privado ou, paradoxalmente, como se não fosse de ninguém. Isso fica evidente quando alguém, por exemplo, liga o som alto do carro na rua sem se preocupar com a barulheira, que, com certeza, está incomodando muita gente. O trânsito, aliás, é um celeiro de exemplos dessa confusão entre público e privado. Há motoristas que trafegam como se a via fosse apenas deles. Os outros condutores que se danem. O pedestre, então, coitado!

Minha filha, que hoje tem 8 anos, um tempo atrás me encheu de preocupação. Quando andávamos pelas ruas, ela recolhia todo papel que encontrava pelo caminho. Essa situação se repetiu por alguns dias, apesar da minha zanga, já que lhe explicava que esse material podia estar sujo. Mas a criança insistia em recolher, fazendo birra diante da negativa. Já estava pensando em procurar um psicólogo, quando descobri que ela estava tendo aulas de noções de cidadania e de proteção do meio ambiente na escola. Ao saber da verdade, fiquei desapontado comigo mesmo por não entender o que se passava na cabeça dela. Ela apenas queria cuidar da sua cidade. Fazer a parte dela, mantendo os olhos abertos para deixar a rua limpa. Lembrar disso, agora, me faz pensar sobre “os olhos da rua”, uma metáfora para o cuidado natural exercido pelos cidadãos que utilizam o espaço público. Todavia, esse olhar pode estar ficando, cada vez mais, míope!

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É necessário mudar o foco e entender que o que é público é de todo mundo. É nosso! Por isso, precisa ser cuidado e preservado por todos. É muito triste pensar que essa confusão entre o que é bem individual e o que é bem público decorre de uma coisa chamada patrimonialismo, que era típico da oligarquia rural brasileira, que supunha que o Brasil, como nação, era só dela, porque parte da população era escrava e não tinha direito nenhum.
Essa marca que a nossa sociedade carrega se reflete no modo como usamos a cidade hoje. Recentemente, fiz uma reportagem especial sobre o nosso Parque Halfeld. Infelizmente, lá, que já foi ponto de encontro para muitos juiz-foranos (poucos ainda guardam esse costume), as noções de público e privado não se encontram. O consumo de drogas e de bebidas acontece na frente de todos, e há quem se banhe no pequeno lago, que outrora era cenário de cartão-postal. A praça também foi transformada em mictório a céu aberto, pois há quem faça suas necessidades fisiológicas sem a menor reserva. Moradores ao redor do parque, assim como comerciantes que ali atuam, defendem a tolerância zero e até mesmo o cercamento do logradouro para que volte a ser um local decente.

Mas será que devemos mesmo nos sucumbir à lógica da privatização, a qual estimula a instalação de cercas e muros, fechamento de ruas, condomínios com entrada proibida e diversão paga nos shoppings? Há estudiosos que dizem que não. Para eles, a cidade deve ser compartilhada por todos e é onde se deve haver respeito pelas diferenças e cumprimento de deveres para o seu bom andamento. O filósofo e sociólogo francês Lefebvre, em 1968, no livro “Direito à cidade”, tratou da necessidade de reestruturação das relações de poder dentro do espaço do urbano. Para ele, o controle e as decisões referentes à “produção de espaço urbano” deveriam sair das mãos do capital e do Estado e ir para seus habitantes. Isso ainda é uma utopia, mas, se fizermos a nossa parte, como minha filha tentou fazer a dela, as coisas começarão a chegar ao lugar, mas sem perder de vista o papel do Poder Público nesse processo!

Marcos Araújo

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