Enem, cinema e desejo de luz no fim do túnel

Por Marcos Araújo

07/11/2019 às 07h03 - Atualizada 07/11/2019 às 07h04

O tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), aplicado no último domingo (3), é uma ótima oportunidade para uma importante reflexão. Os alunos tiveram que dissertar sobre a democratização do acesso ao cinema no Brasil. O assunto é polêmico, uma vez que o atual Governo brasileiro não tem demonstrado muitas afinidades com o audiovisual, tendo implementado mudanças na Ancine, que é a nossa Agência Nacional do Cinema, e cortes de verbas para filmes com a temática LGBT, argumentos que já foram tratados por esta coluna.

Também não superamos o baque de que, em setembro, uma canetada governamental visa a reduzir a principal fonte de fomento de produções audiovisuais brasileiras. Um projeto de lei foi apresentado ao Poder Legislativo, prevendo o corte de 43% do orçamento do Fundo Setorial do Audiovisual. Antes que se diga que é dinheiro gasto com perfumaria, é preciso explicar que esse é um fundo que se retroalimenta com os próprios resultados das produções, taxas cobradas e tributo pago pela exploração comercial de obras audiovisuais. Dessa forma, bombardeá-lo parece ser um raciocínio nada inteligente do ponto de vista administrativo.

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Em outra circunstância de recalque contra o cinema nacional, o Governo determinou que a sede da Ancine fosse transferida do Rio de Janeiro para Brasília, com o intuito de poder ter mais controle sobre o órgão. Infelizmente, todas essas ofensivas contra a nossa sétima arte é uma guerra, totalmente sem lógica, contra um setor que gera empregos e é considerado simbólico da nova economia, já que os países, cada vez mais, investem em indústrias que se relacionam à criação e à criatividade.

Todos esses achaques governamentais colocam o Brasil na contramão, minando nossa indústria cinematográfica que vai de vento em popa, vide os resultados alcançados por filmes como “Bacurau”, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, e “A vida invisível”, de Karim Ainouz, ambos premiados no Festival de Cannes este ano.

Por estas razões, falar de democratização de acesso ao cinema é fundamental nesse país. Numa entrevista concedida esta semana, a diretora Anna Muylaert, criadora do longa “Que horas ela volta”, disse que o tema do Enem faz o estudante se questionar sobre si e acerca da importância do audiovisual no mundo contemporâneo, o que é produtivo para o indivíduo no que diz respeito ao modo de pensar a sociedade de hoje. Ainda mais quando sabemos que o audiovisual tem ocupado parte significativa do tempo das pessoas.

O cineasta Zoel Zito de Araújo, criador do belíssimo filme “As filhas do vento”, ressaltou que vivemos uma grande mudança na forma de acesso aos filmes, que é cada vez mais pela internet, pelo celular, no YouTube, nos canais de streaming, na assinatura de canais a cabo, do que pelas salas de cinema. Para ele, nunca se viu tantos filmes quanto hoje. Por isso, o importante é a população ter consciência que a experiência humana, no momento atual, já não comporta viver sem cinema, acessado de diferentes formas.

De forma contraditória e, para muitos, na cara de pau mesmo, o Governo impõe obstáculos ao audiovisual, mas quer ficar bem na fita, fazendo os estudantes pensarem sobre acesso e democratização do cinema. Em tempos tão obscuros, de perseguição à arte e à cultura, consigo pensar apenas que toda forma de reflexão, como essa proposta pelo Enem, pode, em algum momento, gerar luz no fim do túnel.

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Marcos Araújo

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