Mostra de Tiradentes ecoa força e diversidade do cinema mineiro

Mesmo sem prêmios, Minas se consolida em festival com produção inventiva, madura e com importantes editais


Por Mauro Morais

28/01/2019 às 19h03

Público lotou a tenda montada em Tiradentes para assistir à pré-estreia do mineiro “A rainha Nzinga chegou”, de Junia Torres e Isabel Casimira. (Foto: Jackson Romanelli/Universo Produção/Divulgação)

Ainda que toda comparação indique compreensão, a ausência de elos também pode sugerir um desmedido entendimento. O cinema em Minas Gerais parece ter alcançado um lugar de multiplicidade insuportável às análises sintéticas. Com tantos quadros, a produção mineira parece impossível de enquadrar. Com 21 filmes na Mostra de Cinema de Tiradentes, encerrada no último fim de semana, o estado não abocanhou nenhum prêmio (ofertado a produções cariocas, paulista, paraibana e goianas), mas mostrou sua faceta mais robusta e sofisticada. “É difícil estabelecer um ponto comum entre eles. São filmes distintos e é necessário ir mais a fundo em cada um deles para pensar no que convocam. Mas é interessante pensar que é uma cena extremamente rica e diversa. Tem realizadores mais experientes, que estão começando a fazer projetos fora do estado. Alguns ainda despontam aqui e tentam experimentar outras lógicas de produção. Alguns são mais experientes e ainda não saíram de Minas Gerais. Vemos realizadores de gerações diferentes e moldes de produções distintos. Ainda assim, algumas recorrências existem”, aponta a curadora Camila Vieira, sob a concordância do cineasta Ricardo Alves Jr.: “Acho que a produção mineira é diversa, são múltiplos olhares sobre a realidade contemporânea. Não compartilho da ideia de ter um vocabulário próprio. Acho que o rico da produção de Minas é justamente essa: a diversidade na forma de representar o real. Acredito que são filmes diferentes, realizados em contextos diferentes. Mas são filmes que olham o diferente, como os personagens se relacionam com suas angústias em relação ao mundo que habitam, como o sujeito é atravessado pelo seu tempo histórico.”

Coautor de “Russa”, curta-metragem coproduzido com o diretor português João Salaviza e filmado na cidade do Porto, Ricardo representa a nova cena, com um olhar sensível e delicado que se desdobra em trabalhos de diferentes durações, como o longa “Elon não acredita na morte” e o média “Vaga carne”. Seu interesse está, sobretudo, no íntimo. Elon, por exemplo, é um homem em busca da esposa em uma Belo Horizonte vista por seus prédios antigos e labirínticos. “Os espaços reverberam o interior dos personagens”, aponta o cineasta, que no curta português explora a face cruel da especulação imobiliária. “Para nós (ele e Salaviza) era muito importante fazermos um filme que colocasse no centro a voz dos moradores, tornando visível o pertencimento que eles têm do prédio onde vivem, que está ligado à história individual de cada personagem”, diz.

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Segundo a curadora Camila Vieira, o filme se alinha com outra produção de um realizador mineiro, Desali, cineasta que pesquisa a interseção entre cinema e artes visuais. “‘Russa’ e ‘Trabalho’, do Desali, por mais que tenham a questão do corpo como algo presente, trabalham de formas distintas. Em ‘Russa’, a personagem principal tem que lidar diretamente com a experiência do despejo, porque vive em uma região que passa por uma especulação imobiliária, e o corpo é tratado de uma forma central. Já ‘Trabalho’ propõe pensar qual é a experiência do corpo em um lugar e um espaço para depois entender o que são as subjetividades. São duas formas de entender o corpo, pela centralidade ou pela compreensão do espaço social, que interfere na forma como eles agem no mundo”, reflete Camila, que percebe o Festival de Tiradentes como território de intercâmbio entre criadores tão diversos.

Documentário experimental “À cura do rio” mostra como etnia Krenak se dedica a salvar o Rio Doce da tragédia que devastou o curso d’água após rompimento de barragem em Mariana, há três anos. (Foto: Divulgação)

Filmes maduros e ousados

No filme “Obreiras”, de Ana França, Gabriela Albuquerque e Isadora Fachardo, a produção mineira mostra sua inclinação às temáticas inusuais, com personagens fortes e raros na telona. O documentário retrata mulheres que atuam como pedreiras e discute as relações de trabalho e de gênero. Já “À cura do rio”, de Mariana Fagundes, aponta para o compromisso com a atualidade. Também em linguagem documental, mais experimental, o filme estabelece diálogo entre a comunidade indígena dos Krenak para pensar em uma cura para o rio atingido pelo rompimento da barragem que devastou Mariana há três anos, em uma urgência que os noticiários recentes confirmaram importante. Documentar, de acordo com Camila Vieira, surge como ação distinta em duas produções: “O jacaré e o homem do boi”, de Paulo Alexandre Coelho, apresenta-se como um “falso-documentário” com “um humor extremamente peculiar, lidando com questões da cultura na região” e “Um certo Maralonso”, de Samuel Fortunato, lança mão da narrativa convencional.

Premiada em sua estreia, na Mostra de Cinema de Tiradentes de 2017, com o longa-metragem “Baronesa”, Juliana Antunes confirma-se como um dos grandes nomes da nova geração de cineastas mineiros com o curta “Plano controle”. “É um proposta bem distinta de ‘Baronesa’, porque aqui ela dialoga com a ficção científica. ‘Baronesa’ é um filme de ficção a partir de uma certa relação observacional que vem do documental. Há um apelo muito grande do realismo nele. Já no ‘Plano controle’ ela escapa disso, saindo do longa-metragem para o curta-metragem e explorando outros tipos de linguagem”, elogia Camila, chamando atenção para outro nome, o de Marco Antônio Pereira, louvado na edição passada do festival, em 2018, com seu “A retirada para um coração bruto”. “Para nossa surpresa ele foi vencedor do júri popular, o que é muito raro de acontecer, porque, geralmente, os curtas que ganham o júri popular são os que passam na praça. Esse realizador que a gente desconhecia, e que vem de Cordisburgo, vem demonstrando uma carreira extremamente promissora dentro do curta-metragem. No mesmo ano ele fez ‘Alma bandida’, um filme selecionado para Berlim. Ano passado foi um ano que o nome dele despontou na cena do cinema brasileiro contemporâneo. Este ano ele retornou à Mostra de Cinema de Tiradentes com outro curta-metragem, ‘Teoria sobre um planeta estranho’, que também explora uma narrativa seduzida pelo fantástico e misterioso, que ele adora fazer.”


Cena de “Plano controle”: filme confirma cineasta Juliana Antunes como um dos mais importantes nomes da nova geração. (Foto: Divulgação)

Incentivos prolíficos e essenciais

Se a qualidade da produção cinematográfica mineira consolidou-se como inquestionável na recente edição da mostra que atingiu 37 mil pessoas na pequena Tiradentes de apenas 7 mil habitantes, também mostraram-se louváveis os editais públicos e privados lançados no estado nos últimos anos. Para o cineasta Ricardo Alves Jr., dois principais mecanismos de fomento se destacam como incentivadores da cena contemporânea: o estadual Filme em Minas e o publicado pela Codemig. “A importância dos editais e das outras políticas públicas faz com que o cinema feito no estado proporcione esse número expressivo de produções. Sem política pública não existiriam os filmes que estão circulando festivais em todo o mundo, levando o nome do estado para os festivais mais importantes, como Cannes, Rotterdam, Locarno, Veneza”, comenta o artista, que com “Elon não acredita na morte” foi premiado por sua contribuição artística no festival de Cinema de Macau, na China.

“Este ano, talvez por conta das políticas públicas e por conta do Pólo da Zona da Mata, as coisas se configuraram de forma diferente. Vimos um tratamento melhor de como a linguagem é trabalhada. Entendemos que as produções fizeram um deslocamento. Com recursos, a produção consegue alcançar outros resultados. A questão é saber se essa produção vai permanecer”, aponta a curadora Camila Vieira, destacando a atuação do polo cinematográfico que firmou-se em Cataguases e levou à Tiradentes dois filmes, “Casulo” e “Um certo Maralonso”. Para Camila, a região desponta como instigante centro inventivo. “Sinto que foi fomentada essa produção e se viu a potencialidade dela para além de certas recorrências de termos. O que era muito presente nos anos anteriores eram os filmes sobre patrimônio histórico, questões muito localizadas. Agora vemos muita produção de Juiz de Fora e entendemos que existem outras temáticas possíveis e outras possibilidades de fazer cinema. E isso estará sendo estimulado. E muita coisa boa pode vir daí. Esperamos que haja continuidade.”

Documentário “Um certo Maralonso” e ficção “Casulo foram produzidos no Polo Audiovisual da Zona da Mata, considerado centro de revelações para a cena mineira. (Foto: Divulgação)

 

Ficção “Casulo”, de Rafael Aguiar, foi rodada em Cataguases, com produção do Polo Audiovisual da Zona da Mata. (Foto: Divulgação)

CONFIRA OS PREMIADOS DA 22ª MOSTRA DE CINEMA DE TIRADENTES

Melhor longa-metragem pelo júri popular
“Meu Nome é Daniel” (RJ), de Daniel Gonçalves.

Melhor curta-metragem pelo júri popular
“Negrum3” (SP), de Diego Paulino.

Melhor curta-metragem pelo júri da crítica
“Caetana” (PB), de Caio Bernardo

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Melhor longa-metragem pelo júri jovem
“Parque Oeste” (GO), de Fabiana Assis

Melhor longa-metragem da Mostra Aurora, pelo júri da crítica
“Vermelha” (GO), de Getúlio Ribeiro

Prêmio Helena Ignez para destaque feminino
Cristina Amaral, montadora de “Um filme de verão” (RJ)

Prêmio Canal Brasil de curtas
“Negrum3” (SP), de Diego Paulino

Tópicos: cinema

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