Mostra revela capa que Murilo Mendes não quis para livro

Exposição faz homenagem ao artista visual Farnese de Andrade e resgata capa criada para livro de Murilo Mendes, que desagradou o escritor


Por Mauro Morais

26/09/2018 às 07h00

 

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... recriação de Paulo Alvarez, com trabalho que Farnese de Andrade gostaria de ter substituído

Murilo Mendes não gostou. Mas ficou firme. Em carta de 20 de fevereiro de 1971, endereçada ao editor Daniel Pereira, da José Olympio, o escritor juiz-forano radicado em Roma revelava não ter sido consultado e, também, não ter aprovado a capa de seu “A idade do serrote”, publicado em 1968 pela Editora Sabiá, de Fernando Sabino e Rubem Braga. “Os sabiás são velhos camaradas”, justificava o poeta por não ter questionado a arte diante do aborrecimento. A polêmica ganha lugar, 50 anos depois, na exposição “Farnese: Pintura. Gravura. Objeto.”, em cartaz no Museu de Arte Murilo Mendes até 14 de outubro. Relacionando a carta do escritor a uma crônica de Rubem Braga, a mostra revisa o episódio e apresenta o que seria o projeto de Murilo para a capa do livro seguinte, “Poliedro”.

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“Para evitar, a vocês e a mim, aborrecimentos, acho melhor ser franco. Tenho, como você sabe, a máxima estima pelo nosso adorável Jardim: mas não creio que seus desenhos se enquadrassem bem no texto de ‘Poliedro’; isto devido ao caráter particular do livro. A capa deverá ser composta com letras maiúsculas, traços, talvez alguma figura geométrica, obviamente o poliedro”, escreveu Murilo a Daniel, no documento hoje pertencente ao acervo da Fundação Casa de Rui Barbosa. “A capa de Poliedro acabou sendo feita por Israel Pedrosa, em consonância com as sugestões do poeta. E seria o caso de lembrar aqui, a propósito justamente dessas sugestões e preferências do poeta, um dos fragmentos do ‘Setor Texto Délfico’, de ‘Poliedro’: ‘Paralelas e tangentes alegrias da construção geométrica’, que não deixa de ser uma manifestação de seu interesse pelas vanguardas construtivas da época”, destaca o ensaísta e pesquisador Júlio Castañon Guimarães em posfácio da mais recente edição de “Poliedro”, de 2017.

Autor de desconcertantes objetos nos quais reúne bonecos a peças em vidro e madeira, para as quais dá outros e novos significados, Farnese de Andrade ocupa a primeira capa de “A idade do serrote” com um trabalho fálico em cujo topo está uma cabeça de boneco de plástico. “Tenho dele um objeto que comprei há uns oito anos na Petite Galerie, um velho tinteiro de cristal cheio de bonequinhos mínimos e bolas de vidro, e dominado por uma cabeça de boneco pateticamente inocente. Usei isso uma vez para fazer a capa do interessantíssimo livro de memórias de Murilo Mendes, ‘A idade do serrote’, mas a capa saiu mal impressa, e Farnese ficou aborrecido com seu objeto antigo. Quer trocar por um novo, destruindo o velho, o que não permitirei”, narrou Rubem Braga, no artigo “Farnese e as coisas que ele faz”, publicado no jornal “Última Hora” em 1974.

Responsável pela expografia da mostra, Paulo Alvarez saiu em busca do objeto que Farnese gostaria de ver na capa. Ligou para Daniel Braga, neto de Rubem, e confirmou a existência de peça semelhante à da capa no acervo do cronista. A viúva de Roberto, pai de Daniel e único filho de Rubem, foi quem enviou a fotografia do trabalho de Farnese que não se eternizou no livro. E Alvarez recriou a capa, como o artista desejava. A diferença entre os objetos é sutil, já que são constituídos por espécies de tinteiros preenchidos por bolas de gude. “Fiz imaginando o que poderia ser. Numa tentativa de mostrar o trabalho do artista e ilustrar essa polêmica”, comenta Alvarez, chamando atenção para a referência que a obra de arte traz para a capa, o surrealismo, já vencido na trajetória de Murilo em “A idade do serrote”. Àquela altura, já não fazia sentido que o escritor se visse relacionado à corrente que havia superado. Ainda, o design da capa carrega consigo fragilidades. “Tecnicamente é um trabalho de resultado muito duvidoso, com uma impressão muito ruim. Esteticamente e graficamente não tem um bom resultado, ainda que o objeto de Farnese seja interessantíssimo”, avalia Alvarez, que pretende dar atenção semelhante aos outros livros do poeta, desnudando o que chama de memória gráfica da bibliografia de Murilo Mendes. “As capas também constituem a inspiração de um autor.”

Arte indestrutível e indispensável

Pouco mais de dez anos depois do lançamento de “A idade do serrote”, Farnese de Andrade inscreveu seu nome na história artística de Juiz de Fora, com a exposição “Figuras e objetos” e numa visita em que produziu diferentes retratos, hoje dispersos em acervos locais. “A exposição do artista plástico Farnese de Andrade, aberta ontem com um vernissage na Capela Galeria de Arte, apresentou um fato inédito neste campo cultural em Juiz de Fora: quando a mostra foi inaugurada todos os 30 desenhos do artista já estavam previamente vendidos, restando apenas algumas esculturas e objetos do artista”, anunciava a edição de 14 de junho de 1979 do “Diário Mercantil”. Alguns dos trabalhos, retomadas na exposição em cartaz no Mamm, reforçam o caráter investigativo do artista.

Em suas pinturas, Farnese tinha como processo primeiro desenhar com nanquim preto e, depois, no verso, aplicar aquarela e outra substância que fazia as manchas migrarem para a frente do papel. “Ele era um trabalhador, na gravura ele também ficava insistindo num resultado que se aproximasse do que ele desejava”, pontua Paulo Alvarez. “Ele costumava falar que usava a pintura como descanso mental”, acrescenta, chamando atenção para a presença de figuras humanas em seus desenhos, diferentemente das imagens não-humanas de seus objetos. “Muitas vezes ele não considerava que os objetos estivessem prontos. Era sempre um processo”, destaca Alvarez.

Consagrado por seus objetos, que retomam aspectos da memória, relacionam-se com o erótico e o sexual, compõem a ressignificação do cotidiano e perfazem o imaginário surrealista, Farnese de Andrade, morto em 1996, chega à contemporaneidade pleno em sentido. Ainda em seu artigo para o “Última Hora”, Rubem Braga destaca: “Da natureza dessas coisas extrai um sentido que se casa a outro, e, às vezes, é a um só tempo erótico e místico, às vezes perdidamente lírico – uma asa, um olho, uma figura colorida de cartão postal do fim de século, um pedaço de estribo ou de muleta, uma alta campânula ou uma velha gamela de madeira preta emoldurando um sonho de vidro ou de marfim.” E finaliza, como a sintetiza toda a produção do mineiro de Araguari: “Mas o que acontece sempre é que, uma vez acabado, o objeto novo tem uma unidade indestrutível e tudo nele é certo e indispensável.”

FARNESE: PINTURA. GRAVURA. OBJETO.
Visitação de terça a sexta-feira, das 9h às 18h, sábados, domingos e feriados, das 12h às 18h, no Museu de Arte Murilo Mendes (Rua Benjamin Constant 790 – Centro). Até 14 de outubro

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Tópicos: literatura

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