População de Brumadinho luta para retomar a rotina após rompimento da barragem
Comunidade tenta se reerguer, mas a lama que engoliu o município está retratada até mesmo nos desenhos infantis
Dezoito dias após o rompimento da barragem da Mina Córrego do Feijão, a Tribuna esteve em Brumadinho (MG) para acompanhar a tentativa de retomada da rotina no município onde mais de 166 pessoas perderam a vida e outras 144 continuam desaparecidas. Se por um lado há a destruição visível provocada pelos rejeitos de minério da Vale e pela onda de lama que saiu engolindo tudo o que encontrou pela frente, por outro há um rastro de dor difícil de ser dimensionado, pois não há como medir o trauma que cada morador carrega dentro de si.
Desenhos cedidos pela ONG NaAção, de Belo Horizonte, feitos por crianças afetadas pela perda de familiares, conhecidos ou de suas casas, dão pistas sobre o alcance dessa devastação. Nas imagens, todos os rabiscos são marrons, o mesmo tom da lama que sepultou histórias e sonhos no último dia 25 de janeiro. Até conhecidos personagens da TV, como o Bob Esponja, mudaram de cor aos olhos infantis. Mesmo nos traços onde o colorido é mantido, o verde da paisagem contrasta com os corpos tombados em meio à natureza. E nas imagens supostamente cheias de vida, os personagens criados por meninos e meninas carregam expressões de medo e de perplexidade. O fato é que Brumadinho está submersa em incertezas sobre o destino de cada morador e sobre o futuro da cidade de 44 mil habitantes que integra a Região Metropolitana de Belo Horizonte.
Na casa de Conceição Lopes, 53 anos, moradora do Córrego do Feijão, o tempo parou naquela sexta-feira, precisamente às 12h28. Desde que a barragem se rompeu, o marido dela, Levi Gonçalves da Silva, 59, está desaparecido. Contratado por uma terceirizada da Vale, Levi trabalhava na limpeza dos vagões que transportavam o minério. No dia 25 de janeiro, quatro horas antes da tragédia, ele despediu-se da esposa com um abraço. Ela estava na correria para entregar “quitandas” na comunidade, um bico que fazia, já que a comida dela é famosa na região onde residem cerca de 150 famílias.
Mesmo morando na comunidade há 19 anos – ela e o marido deixaram Itamarandiba (MG) em busca de uma vida melhor -, Conceição não percebeu que alguma coisa estava errada. Foi a nora dela quem telefonou pedindo notícias dos parentes na mina. Até então, a dona de casa não desconfiava da gravidade da situação. Só mesmo quando vizinhos e os filhos começaram a procurar informações é que ela percebeu que poderia ter ocorrido algo bem pior do que imaginava.
Ainda assim, ela acreditava que tudo se resolveria às 21h30, quando Levi voltaria para casa ao final do expediente. Mas o relógio já marcava 22h e nada de o marido abrir a porta. Quando o silêncio invadiu as horas, Conceição se desesperou. “Eu achei que não ia ser igual ao que foi. Tinha esperança de ele voltar. Eu fiquei esperando e nada. Até hoje penso que ele pode estar vivo em algum lugar”, afirma.
Última notícia
Casados há 37 anos, Levi e Conceição tiveram cinco filhos e oito netos. Todos estão, há 23 dias, em compasso de espera. A última notícia sobre o limpador de vagões foi dada por sobreviventes do evento. “Eles disseram que viram ele correr. Não deve ter dado tempo para ele. Em dezembro do ano passado, meu marido fez uma simulação de acidente caso a sirene tocasse, mas, na hora que aconteceu, nada tocou. Eles foram pegos de surpresa. Foi um pouco de descuido deles (Vale). Podiam ter evitado. Não posso reclamar muito, porque é o lugar onde as pessoas trabalhavam e tiravam o sustento da família. Sei que eles são culpados, mas a gente não sabe nem explicar direito. Parece que estou vivendo um sonho, que não está acontecendo. Sinto tanta falta de Levi. Ele era tão amoroso. Se eu estivesse deitada, ele fazia um leitinho e levava lá na cama para mim”, lamenta.
À espera de despedida digna
Sem um corpo para velar, Conceição reza para que os helicópteros que cortam o céu de Brumadinho durante todo o dia possam trazer Levi para uma despedida digna. “Não ter um corpo para velar é triste. Amanhece o dia e, quando chega a noite, nada. É um desespero. Aqui era um lugar muito tranquilo. Foi aqui que Deus me abençoou. Nós compramos um barracãozinho, Levi foi puxando os pedacinhos para lá e para cá. Agora está esse movimento todo. Quando os helicópteros passam dá uma angústia muito grande. No entanto, na hora que esse pessoal for embora, a gente vai se sentir solitário. Vai ficar um buraco aqui”, diz, apontando na direção do próprio peito.
Conceição refere-se ao intenso movimento de pessoas no povoado antes pacato e desconhecido. Na entrada da comunidade há um posto de atendimento onde estão representantes de movimentos sociais, de entidades públicas, de voluntários e da Vale. Também há fiscais do meio ambiente, bombeiros e socorristas. Fora os helicópteros. Já houve dia em que até 16 aeronaves foram lançadas nos céus de Brumadinho, somando 200 horas de voo.
Aos 8 anos, Wiliam Lopes Muniz, neto de Conceição, diz estar se acostumando com o barulho. “Incomoda um tiquinho”, diz, tentando explicar o que os helicópteros fazem ali. “Eles estão procurando pessoas. Quando chove, eles não fazem busca. A barragem da Vale estourou sexta-feira, meu vô estava lá naquela hora e meu tio. Meu tio morreu, meu vô está desaparecido. Eu perdi muita gente, meu vô, meu tio, é muito triste. A Ester, minha amiguinha, perdeu a amiga dela. A Vale é muito exagerada com as coisas, porque tinha muita gente andando por cima daquela barragem. Quem construiu aquela barragem foi um bobo, porque construiu em cima da mineração, em cima das casas. Agora a Vale vai ter que pagar. Todo mundo está falando que vai (pagar). Isso podia ser um pesadelo”, descreve o menino que usa um fone de ouvido para despistar o barulho perturbador. O mergulho no universo dos jogos eletrônicos é o jeito que Wiliam encontrou para fugir da Mina Córrego do Feijão, pelo menos virtualmente.
Isolamento dificulta “retrato real”
O tsunami de lama que engoliu pessoas e parte da cidade dividiu Brumadinho em muitos pedaços. Além de deixar mais de 120 órfãos, o rompimento da barragem isolou diversas comunidades. No caso da Mina Córrego do Feijão, a estrada que ligava o povoado da Zona Rural ao centro da cidade está interditada por causa dos rejeitos. Já a passagem disponível – que fica dentro da área da Vale – só está liberada para veículos autorizados. Os carros de passeio, considerados os não autorizados, precisam dar a volta pela serra para chegar ao Centro ou deixar a cidade, aumentando em mais de cem quilômetros o percurso antes feito em menos de 30 quilômetros. No total, cerca de 200 famílias têm dificuldade de se deslocar.
Indignados, moradores de Córrego Ferreira bloquearam a entrada da Mina Córrego do Feijão, na última quarta-feira, para protestar. Gerson Gomes dos Santos Júnior, 41 anos, laticinista, fazia parte do movimento. “Estamos reivindicando o direito de ir e vir. A Vale só deu autorização para algumas pessoas passarem pelo trajeto mais curto. O resto não está passando. Não chega material e nem matéria-prima. Meu caminhão percorria 120 quilômetros para atender aos nossos produtores e hoje precisa fazer 240. Tenho que subir a serra, pegar Belo Horizonte, para chegar ao centro de Brumadinho e aí sim subir para a região de Bonfim. Ainda não fechei o mês e nem calculei o tamanho do meu prejuízo. Estamos totalmente isolados”, critica o produtor de leite.
Dono de um depósito de material de construção em Córrego Ferreira, Adibe Adriano Braga, 43, afirma que não há passagem para o abastecimento das comunidades. Na dele, não chega areia, brita e nem pedra. “Estamos nos sentindo completamente esquecidos”.
Os prejuízos vão muito além da questão financeira. No caso de Kelle Silva Campos Alves, 40 anos, os filhos dela perderam uma semana de aula por não conseguirem chegar à escola particular que frequentam no Centro de Brumadinho. “A gente pagava uma moça pra fazer o transporte, mas ela não tem autorização da Vale para poder passar por esse caminho. Então, eles perderam uma semana de aula e, esta semana, estão na casa de conhecidos lá na cidade para poderem estudar. Imagine o meu desespero. Os caminhos que existem por Ibirité e Betim levam três horas de viagem. Antes a gente gastava 40 minutos. Esse apoio que passa na televisão, a Vale não está dando. Ninguém nos procurou. Até esse momento, estamos ilhados”, denuncia.
Carolina Morichita Mota Ferreira, defensora pública do Estado de Minas Gerais, 31, reconhece que o isolamento dos povoados compromete o “retrato real” da situação. “Aqui o que temos feito é ficar o mais próximo possível da comunidade, para ver que realidade estão vivendo, as principais reclamações, as coisas que não estão sendo atendidas e levar tanto para o gabinete de crise, quanto para as reuniões com a Vale. Também trazemos informações do que tem acontecido. Os atingidos têm participado das reuniões. Como essas comunidades estão isoladas, a sociedade fica sem um retrato real do que está acontecendo”, admite.
Sem dimensão dos danos
Segundo a defensora, o recomeço das famílias tem sido muito difícil, não só porque ainda há dezenas de desaparecidos, mas pela dimensão dos danos. “Além da questão da moradia, da proximidade com a lama, há os danos psicológicos. Nos primeiros dias, a gente tinha inúmeros helicópteros passando aqui e, algumas vezes, transportando os restos mortais encontrados. Parentes de desaparecidos não conseguiam nem interagir, porque ficavam pensando se era o familiar delas que tinha sido, finalmente, encontrado. O barulho tem sido muito difícil, o cheiro da lama, o ir e vir. Tem uma estrada por dentro da Vale que eles não liberaram acesso para veículos particulares, mas passam seis horários de vans em cada sentido para levar trabalhadores de uma ponta a outra. No entanto, as pessoas dizem aqui que não é suficiente para atender a demanda. A comunidade Cantagalo, que fica para trás do Córrego do Feijão, só tem duas vans por dia disponibilizadas pela Vale: às 6h e às 18h. As pessoas estão ilhadas.”
No dia da entrevista, a repórter só conseguiu chegar ao povoado do Córrego do Feijão, cuja entrada havia sido bloqueada pelo protesto, pegando carona dada por socorristas em uma ambulância. A estrada Mina da Vale, que faz ligação entre o centro de Brumadinho e a comunidade do Córrego do Feijão, foi liberada na quinta-feira, um dia após o protesto.
Em rua ‘fantasma’, 15 casas foram destruídas. Só uma está de pé
Se no Córrego do Feijão o problema é o isolamento e o número de mortos – a maioria dos 400 moradores tinha parentes trabalhando na mina -, no Bairro Parque das Cachoeiras o tamanho dos danos materiais impressiona. A Rua Augusto Diniz Murta, por exemplo, tornou-se uma via fantasma. Quinze casas desta rua foram total ou parcialmente destruídas pela lama.
Sandra Maria da Costa, membro do Conselho da Pastoral, é dona da única casa que ficou de pé na via e ainda não sabe o que vai ser dela e da família. Apesar de o imóvel não ter sido afetado, o terreno foi. No entanto, deixar para trás tudo que ela e o marido Mário Lúcio Patto, 64, construíram é doloroso. Os dois são donos de um imóvel amplo, de cinco quartos, construído há 33 anos sobre um terreno de 5 mil metros quadrados. No ano passado, eles investiram todas as economias para reformar a casa onde a família se reúne nos fins de semana.
Antes, ao olhar pela janela da cozinha, Sandra admirava a paisagem exuberante do lugar onde passava o Córrego Ferro do Carvão. Agora tudo está pintado de marrom. Até o córrego, soterrado pelas toneladas de rejeito, teve seu curso alterado. Insistente, ele ainda tenta encontrar caminhos para a passagem do filete d’água que restou, mas, por enquanto, só consegue rastejar.
Cenário “pavoroso”
Tudo mudou para Sandra às 12h57, horário em que a lama atingiu a área onde mora, exatamente 19 minutos depois de a barragem estourar. “O troço é pavoroso, a gente ouve o barulho, mas fica sem entender o que está acontecendo. Estava com meu neto e minha mãe idosa aqui e os vizinhos começaram a gritar. Eu fui para a rua, eles começaram a ir para minha casa. Na hora, minha moradia se transformou em posto de atendimento”, recorda. A casa de Sandra fica a cerca de 60 quilômetros de distância da barragem.
Agora, quando olha pela janela de cozinha, ela só vê destruição. “Eu estava nessa janela, quando vi (a lama chegar). Antes a gente via só a mata. Está sendo um sofrimento. Provavelmente vou ter que sair. A gente reformou tudo, e agora estamos com a casa nova, mas com esse sonho interrompido”, afirma com a voz abafada pelo barulho dos helicópteros que sobrevoam a área. “Isso só vem trazer, toda hora, a lembrança do que aconteceu”, revela. Só nas proximidades da moradia de Sandra, cinco corpos foram encontrados pelos bombeiros.
Segundo o marido dela, Mário Lúcio, dono de uma empresa provedora de internet, a Vale ofereceu pagar um ano de aluguel para família deixar o imóvel. “E depois? Eu faço o quê?”
Solidariedade que vem dos quatro cantos do país
Mesmo enfrentando o risco de perder sua casa, Sandra Maria da Costa não cruzou os braços diante da dor alheia que ela entende ser maior do que a sua. Desde o rompimento da barragem, ela e cerca de 20 voluntários da Paróquia de São Judas Tadeu se uniram para oferecer almoço a quem perdeu alguma coisa. No primeiro dia da tragédia, os voluntários cozinharam um pouco do que cada um tinha em casa. Hoje cerca de 700 quentinhas são distribuídas por dia na paróquia, trabalho agora assumido pela Vale. “Foi a comunidade do Parque da Cachoeira que começou essa ação, quando as famílias ficaram desabrigadas e, ao perderem tudo, não tinham o que comer. Aí pegamos o espaço que a gente tinha da Arquidiocese para poder acolher. Toda a mobilização foi feita pela rede social. Agora é a Vale que está bancando. Aqui almoçam pessoas que perderam casas, voluntários. A comida dos bombeiros é essencial. A gente conta de manhã quantos bombeiros tem na área e arruma o lanche deles. Eles são prioridade”, diz, reconhecendo a importância do difícil trabalho desempenhado pelos militares.
Carolina Antunes, 41 anos, fundadora do NaAção, ONG de Belo Horizonte que fomenta o empreendedorismo social, deixou a capital mineira para se juntar às vítimas da barragem. O objetivo dela é criar, a médio prazo, um impacto social positivo através das ações promovidas pela entidade. Além de oferecer apoio psicológico e assistência social, a ONG tem foco na sustentabilidade de ações voltadas para a promoção do bem comum. “Não temos data para ir embora de Brumadinho, pelos nossos cálculos, ficaremos em torno de um ano. Desde que eu pisei aqui (no dia 26 de janeiro), estou aprendendo. Primeiro foi um silêncio gigante, uma impotência gigante, uma falta de informação gigante. A gente tem que entender o que as pessoas precisam, perguntar aos atingidos o que precisam. A nossa base foi cedida pela própria comunidade para fazermos o atendimento psicológico, de assistente social, além de um trabalho conjunto com o CAPS, reportando todos os atendimentos, já que o SUS tem a sua rede, e a gente tem que respeitar e trabalhar junto. Então, a gente está aqui para dar apoio e diminuir o sofrimento, porque as pessoas que sobreviveram estavam morrendo por dentro, e a gente não podia deixar isso acontecer”, explica. ‘
Pais da Kiss’ prestam solidariedade em Brumadinho
De muito mais longe vieram Ligiane Righi da Silva e Flávio Silva. Eles são pais de Andri, a jovem de 22 anos que morreu na tragédia da Boate Kiss, ocorrida em 2013 em Santa Maria (RS). Os dois deixaram o Rio Grande do Sul em direção a Minas no domingo passado para abraçar os afetados pelo rompimento da barragem. Viajaram em nome da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria, a fim de trazer afeto e mensagens de conforto escritas pelas mães que perderam seus amores no incêndio. A presença deles foi recebida com surpresa em Brumadinho, mas também com gratidão. “Nossa”, impressionou-se Ricardo Gonçalves, bombeiro de Araxá ao conhecer Ligiane e Flávio.
Conceição Lopes, 53, que está com o marido Levi Gonçalves da Silva desaparecido, também se surpreendeu. Abraçou-se a Ligiane, agradecendo a presença dela na Mina Córrego do Feijão e também ofereceu sua solidariedade aos pais de Andri.
Para Flávio, a experiência em Brumadinho foi muito tocante. “Quando a gente estava chegando próximo a Brumadinho, o coração começou a bater mais forte, porque nos lembramos de todas as situações que a gente passou na tragédia da Kiss. De certa forma, os familiares foram muitos explorados por curiosos que, a todo momento, chegavam perto de nós para saber detalhes de como nossos filhos tinham morrido naquela tragédia. E aí começou a bater na gente a preocupação de como chegar nessas famílias. Mas como também fomos muito acolhidos, viemos fazer o mesmo. A nossa missão é trazer nosso abraço e nossa solidariedade. E fomos muito bem recebidos”, avaliou.
Já Ligiane compartilhou sua experiência com as mães de Brumadinho. “A gente está aqui para escutar e para ajudar as pessoas a entenderem que é pior se fechar no seu luto. Uma das mães que abracei perdeu um filho de 32 anos. Sei que a dor da perda não passa. Aos poucos, a gente vai assimilando, mas há seis anos tenho a sensação de que minha filha está viajando e vai chegar a qualquer hora. A nossa dor, porém, é agravada pela impunidade. Cada vez mais a gente percebe que as pessoas não dão valor à vida. Se tivesse havido punição em Mariana, aqui poderia ter sido evitado.”
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