A rotina como algo extraordinário
A minha rotina no trabalho social e público com as pessoas idosas – uma fração delas – é muito surpreendente e dinâmica. Elas constituem um universo predominantemente feminino e em maior frequência e assiduidade do que o masculino. São senhoras, em sua grande maioria, provenientes de classes populares – embora tenha crescido a procura de pessoas idosas de maior potencial econômico pelos serviços públicos, fruto da pauperização da população, e que estão muito preocupadas com a sua saúde e com o seu bem-estar, por isso procuram o nosso trabalho pelo Departamento de Saúde do Idoso da Secretaria Municipal de Saúde da Prefeitura de Juiz de Fora. Nesse cotidiano de atendimento a essas pessoas, ele está situado na direção oposta do que possa imaginar o senso comum, de que as pessoas idosas são todas iguais e que reagem da mesma forma aos eventos da vida. Não procede essa percepção. É um grande equívoco pensar assim. A singularidade de um idoso ou de uma idosa que atendo, traz um mar de fantasias, realidades, frustrações e possibilidades ocultas. Estou, como de hábito, todos os dias, diante de um mundo humano sempre em construção que não se esgota com a idade que carimba a pessoa. É uma pena que muitas pessoas que eu atendo, não sabem disso – da incompletude humana – no sentido de que possuem sonhos (a realizar) e propósitos de vida a edificarem, mesmo sendo pessoas idosas.
O que me fascina nesse cotidiano e que me faz alargar por dentro como pessoa é a surpresa que cada pessoa idosa me entrega ao se dirigir à mim no estabelecimento de uma conversa ou de um diálogo. Duas condições de que as pessoas idosas ressentem muito: não ter com quem conversar e com quem escute suas histórias de vida. Não dá para viver sem a presença de outra pessoa em nossa vida, no sentido de criarmos relações humanas. Cada pessoa idosa tem o seu jeito próprio de se expressar e de se mostrar. Tem o seu modo de apresentar as suas idiossincrasias, suas especificidades de ser uma pessoa humana. Embora eu esteja em uma idade diferente, menor, do que as pessoas com que compartilho o meu tempo, esses mundos distantes regidos pela cronologia não impedem de estabelecermos trocas humanas de tudo que a vida faz da gente. Vivemos sobre um mesmo tempo. O tempo de ser ou para ser! Reconheço que quando fui convidado (pela Zeneida) para começar esse trabalho com idosos, eu tive medo, por dois motivos básicos: por falta de preparo profissional e por falta de conteúdo de vida, mesmo. Era mais novo e iria conviver com pessoas bem mais velhas que eu. Mas com a passagem do tempo e do crescimento da conscientização pessoal, de que direito não tem idade, carinho, afeto e amor, eu conquistei espaço e me firmei no trabalho. A diferença de idade ficou como se deixasse de existir.
Outra percepção que tenho pelos dias trabalhados com essas pessoas idosas, e que de alguma forma já apresentei em linhas acima, é de que elas não têm com que compartilhar suas vidas dentro de casa, na desejada intimidade familiar. Poucas pessoas idosas têm a presença dos de casa para contar em suas rotinas: as consultas médicas, seus planos de vida, suas compras de supermercado ou da venda da esquina. Essas pessoas idosas são vistas e cobradas pelos seus familiares, muito mais pelos papéis sociais que representam – ser mãe, ser avó – do que respeitadas como pessoas humanas que precisam, como qualquer pessoa, de afeto familiar e de proteção social. Poucas são as que projetam o seu futuro, como se elas não tivessem o direito de viver mais tempo, e que o principal e único horizonte é o de morrer. Mas para morrer não precisa estar com a idade avançada, basta estar na vida. Morre-se o tempo todo e em qualquer idade. Afirmo, prezados leitores, que essa rotina de mais de 30 anos no trabalho gerontológico me fez uma pessoa melhor. Mais resiliente. Melhor de humor. Para mim, o copo está sempre meio cheio. Um brinde!