A Vale dá, a Vale tira


Por Daniela Arbex

16/02/2019 às 17h05- Atualizada 17/02/2019 às 09h54

Quando sentei com meu filho de 8 anos para dizer que viajaria a Brumadinho (MG), a fim de contar histórias, Diego me surpreendeu. “Mamãe, você não vai conseguir ouvir as pessoas. Elas estão debaixo da lama. Estão mortas”, me avisou. Até aquele momento, eu não havia conversado com ele sobre a dimensão da tragédia. Se meu filho, que estava tão distante do epicentro dos fatos, tinha conhecimento das consequências do rompimento da barragem, como se sentiriam as crianças diretamente afetadas pela lama de rejeitos? Foi Wiliam Muniz, o menino com a mesma idade do meu quem me mostrou o tamanho desse sofrimento. “Isso podia ser um pesadelo”, disse, ao comentar o desaparecimento do avô e a confirmação da morte do tio.

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A vontade de acordar do “sonho ruim” estava presente em todas as dezenas de pessoas que conversei, muitas ainda em estado de choque. Moradora do Parque das Cachoeiras, Antônia, 58 anos, soltava os animais da chácara onde vivia com o marido Virgílio, 60 anos, quando assistiu todo verde ser engolido. Residindo a 60 quilômetros de distância da barragem, ela só teve tempo de tirar o neto da casa e fugir para o alto da rua com a roupa do corpo. Quando olhou para trás, o imóvel de dez cômodos tinha desaparecido feito pó. A lama levou a casa, as vacas, as galinhas, o fogão à lenha que ela tanto gostava. Todo sustento da família vinha de lá. Quando perguntei a Antônia, que, desde o dia 25 de janeiro mora em um hotel pago pela Vale, como era amanhecer em um lugar que não era seu, ela me disse que era bom, porque a empresa estava tratando muito bem dela e do marido.

Fiquei tentando entender o sorriso daquela mulher que falava em aproveitar a segunda chance que “Jesus havia dado a ela”. Apesar do discurso de fé, notei que havia medo na sua declaração. Ao final, ela me contou que estava sendo medicada para enfrentar tudo aquilo. Observada por uma psicóloga contratada por uma terceirizada da Vale, a sobrevivente não revelou seu receio, mas estava claro que falar mal da empresa que tirou tudo que ela tinha não estava nos seus planos. Afinal, todos em Brumadinho esperam que, de alguma forma, sejam ressarcidos pela multinacional. Mais do que isso: todos são altamente dependentes das benesses da empresa, a ponto de ela ser considerada pelos moradores como “um mal necessário”. Segundo o advogado Edimar Vital de Mello, as crianças de Brumadinho já crescem desejando um posto de trabalho na mineradora.

O fato é que a maioria das vítimas sabe do crime cometido pela empresa, mas não tem voz para pedir justiça. “Podiam ter evitado. No entanto, não posso reclamar muito, porque é o lugar onde as pessoas trabalhavam e tiravam o sustento da família”, diz Conceição Lopes, moradora do Córrego do Feijão que está com o marido desaparecido. Entendendo isso, torna-se possível compreender porque a empresa que destruiu o sonho de centenas de pessoas, deixando mais de 120 órfãos, dezenas de viúvas, que matou grávidas e crianças ainda é “protegida” por suas vítimas “minúsculas” frente à potência econômica de uma das maiores mineradoras do mundo.

De fato, os números da Vale impressionam, a ponto de a mineradora ter analisado antes da tragédia a probabilidade e as consequências econômicas do rompimento das barragens que estão dentro da zona de atenção, entre elas a da Mina do Córrego do Feijão. Isso mostra que até os riscos são calculados e que, entre preservar a vida humana ou manter o lucro, o capital tem maior peso.

Com ações negociadas na Bolsa de Valores de São Paulo, Paris, Madri e Nova York, a mineradora está acima do bem e do mal. Basta ouvir a declaração do presidente da empresa, Fabio Schvartsman, que comparou a multinacional a uma “joia” que não deveria ser condenada nem mesmo pela soma das mortes em Brumadinho, que ultrapassará 300. Deixando um rastro de dor permanente, a Vale que dá empregos é a mesma que tira vidas.

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Tópicos: barragem

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