‘Cala boca já morreu’

Por Marcos Araújo

03/04/2022 às 08h15 - Atualizada 02/04/2022 às 14h53

A frase dita por Ulysses Guimarães “Temos ódio e nojo da ditadura” por ocasião do seu discurso durante a promulgação da Constituição do Brasil, em 1988, tomou o feed das redes sociais na última quinta-feira (31). A data serve para lembrar daquilo que jamais poderemos esquecer. Nesse mesmo dia, em 1964, João Goulart foi deposto da presidência do país, e um regime ditatorial foi implantado, para cair 21 anos depois. Uma das marcas indeléveis daqueles anos sombrios foi o cerceamento à liberdade de expressão.

O medo de que essa sombra do passado esteja por aí a nos espreitar, em pleno 2022, talvez justifique a reação dos brasileiros em suas timelines. E esse temor encontra sua motivação na proibição que vivemos, dias antes, de artistas fazerem manifestação política durante um festival de música. Às vésperas de se completarem 58 anos de implantação de um período de autoritarismo desmedido e violento no país, a imposição de um “cala boca” aos astros que se apresentavam é trazer à tona o ambiente da ditadura e serve ainda como prova de que a censura nunca nos largou de vez.

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O que deixa o episódio ainda mais nebuloso é o fato de que a ofensiva contra os artistas tenha partido de uma esfera de poder que deveria assegurar o cumprimento da Constituição. E, claro, a reação foi grande e só botou mais lenha na fogueira, já que depois da primeira manifestação castrada, que resultou em multa no valor de R$ 50 mil, muitas outras vieram, dando um tom a mais ao festival. O veterano Lulu Santos mandou o seu recado: “É o seguinte…Como diz Cármen Lúcia, ‘Cala boca já morreu, quem manda na minha boca sou eu'”.

O desejo de silenciar artistas faz parte das atitudes de governos autoritários. Nos 21 anos do período conhecido como “anos de chumbo”, a classe artística e a imprensa foram impedidas de falar tudo aquilo que contrariava o interesse dos poderosos. Atualmente, existe uma tentativa muito grande de contar essa história de outra forma, mas muitos dos artistas que lutaram contra esse estado de coisas ainda estão por aqui. Eles estão vivos para não deixar que o negacionismo dos fatos apague um período que matou centenas de pessoas, torturou outras milhares e colocou em xeque os direitos civis. Não é possível esquecer o exílio imposto a Caetano Veloso e a Gilberto Gil, muito menos a perseguição a Chico Buarque, que tinha praticamente todas as suas canções censuradas.

Sempre é bom lembrar que tudo na vida é político. Nas artes não é diferente. Até mesmo quem usa e abusa da ideia de neutralidade está fazendo política. É preciso que não nos deixemos enganar, pois é impensável dissociar a prática artística da política, e isso faz parte do jogo democrático. Voltando ao discurso de Ulysses Guimarães, ele também disse: “Amaldiçoamos a tirania aonde quer que ela desgrace homens e nações”. As considerações do presidente da Assembleia Nacional Constituinte estão mais atualizadas do que nunca. Tanto é verdade que a reação do público no festival de música, depois da censura, deixou claro que ninguém está disposto a calar a boca.

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Marcos Araújo

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