“Mário de Andrade era um ser múltiplo, um enigma”, afirma Yussef Campos
O Mário de Andrade com o qual o historiador juiz-forano Yussef Campos se relaciona é o gestor. É aquele que, nos idos dos anos 1930, criou e dirigiu o Departamento Municipal de Cultura de São Paulo. É o Mário de Andrade pesquisador da cultura brasileira e que, nas primeiras décadas do século XX, estava rodando o Brasil para conhecê-lo. “É aquele que fez uma viagem ao Amazonas, no ano de 1927; que foi ao Rio Grande do Norte, em 1929; e ao interior de Minas Gerais, em 1924, com Blaise Cendrars, Oswald de Andrade, Tarsila, Olivia Guedes Penteado e Paulo Prado. É aquele que atendera ao pedido do então ministro Gustavo Capanema e do então diretor do Iphan, Rodrigo Melo Franco de Andrade, para elaborar um anteprojeto que desse base para uma legislação da preservação do patrimônio”, conta o também professor da Universidade Federal de Goiás (FGV) e pesquisador da área do patrimônio cultural.
No entanto, o Mário de Andrade que fisgou Yussef nos últimos tempos é o que esteve à frente, ativamente, da realização da Semana de Arte Moderna, movimento artístico-cultural que, há cem anos, chocou boa parte do país. Instigado a saber o que esse Mário pensava acerca daquela estética que estava sendo construída com o nome de modernismo, Yussef fez uma criteriosa seleção de textos do autor de “Macunaíma” publicados, originalmente, em jornais, revistas e livros. O resultado é a coletânea “Inda bebo no copo dos outros: por uma estética modernista” (Autêntica, 224 páginas).
Como organizador, o historiador escreveu uma “Apresentação nada interessantíssima”. É isso mesmo. “Como é a única parte não escrita por Mário, é a mais desinteressante”, confessa ele. E ele foi breve, pois queria dar a palavra a quem de direito, o autor Mário de Andrade. Aliás, o “Prefácio interessantíssimo” que Mário escreveu para “Pauliceia desvairada” também está na coletânea. “O que norteou a seleção dos textos, além do recorte temporal, era tentar enxergar esse Mário. Ele era um polímata, né? Além de pesquisador, gestor, poeta, romancista, professor de música, cronista, jornalista, ele era crítico de arte. Então, são textos nos quais ele está exercendo um olhar crítico”, afirma Yussef, para logo detalhar o caminho que o leitor percorre ao ter o livro em mãos.
“Na primeira parte, que é a “Mestres do passado”, são textos que foram publicados no Jornal do Comércio, e ele está batendo no Judas preferido do Modernismo, que são os parnasianos. A segunda parte é o “Prefácio interessantíssimo”. Depois, vem a “A escrava que não é Isaura”, que é a palestra que ele dá na Semana de 22, no dia 15 de fevereiro. E, depois, textos dispersos na Klaxon, que foi a revista modernista, da qual ele participou diretamente. E nesses textos tem esse Mário que está desenvolvendo um exercício crítico no qual a gente pode se apoiar para tentar definir o modernismo”, sentencia o historiador.
Marisa Loures – Você conta, na “Apresentação nada interessantíssima”, que pensou em várias frases do próprio Mário para usar como título do livro, e aí chegou a “Inda bebo no copo dos outros”, também dele. Diz que ela é muito provocativa. Gostaria que explicasse sua escolha.
Yussef Campos – Todas as frases que estão na apresentação como possibilidades de títulos são frases dele presentes neste livro. São frases nas quais eu enxergo, em poucas palavras, o Modernismo, ou o Mário modernista, melhor dizendo. E elas, em conjunto, ficam até melhores. Por exemplo, “Costumo andar sozinho”, “Antítese: genuína dissonância”. Acho essa também muito boa. “Escrevo brasileiro” talvez seja a mais modernista, e também “Primitivos duma era nova”. Só que o “Inda bebo no copo dos outros” junta com a ruptura, ele diz que ninguém escreve sozinho. A gente carrega uma carga das nossas leituras, de nossas vivências, e até mesmo os parnasianos são importantes. Porque o exercício dialético é isto: a tese, a antítese e a síntese. Então, esse “Inda bebo no copo dos outros”, talvez, ele não aprovasse. Mas ninguém escreve sem ter leitor, né? E é um pouco disso, de trazer para a sua escrita a sua vivência.
– Sua apresentação do livro foi breve. Percebi que queria, mesmo, era deixar Mário de Andrade falar. Você não queria tomar esse espaço dele…
– Exatamente. O livro é dele, não é meu. A única intervenção minha é a seleção dos textos, que, talvez, ele não concordasse. Até a editora falou: “A gente precisa de um subtítulo”. Aí eu sugeri “Por uma estética modernista”, mas eu confesso que até hoje eu fico meio assim. Porque o livro nasceu agora em fevereiro, mas ele está sendo gestado há muito tempo.
– E por que Mário de Andrade não concordaria?
Porque não existe uma estética modernista, a gente tem que falar no plural, e toda seleção é arbitrária. Tavez ele falasse: “olha, faltou o texto tal”, ou será que o “‘Mestres do passado’ não deveria estar aí?”, porque aí, na verdade, estou muito mais preocupado em atuar como crítico de literatura do que definir o próprio modernismo.
– Recentemente, li um texto que questionava por que não teve a inclusão da arte indígena e negra, essencialmente brasileiras, na Semana de Arte Moderna. Mas podemos dizer que, ainda assim, foi um ponto de partida para o que temos hoje em termos de cultura?
– Acho que é indiscutível a importância da Semana de Arte Moderna, mas, a gente não pode confundir modernismo com Semana de Arte Moderna, porque a semana foi um evento da elite, pela elite, para a elite. Restrita a poucos, havia ingresso para entrar, foi no Theatro Municipal de São Paulo. Mário de Andrade disse: “Conseguimos o que queríamos, que era provocar.” Deu prejuízo financeiro aos investidores, sabe? Mas conseguiu provocar essa ruptura. Claro, é importante lembrar também que o modernismo não é um evento isolado no mundo paulistano. Ele está presente em vários lugares do Brasil, no Rio, em Cataguases. Mas a Semana de Arte Moderna é um paradigma, a gente não pode refutar essa questão.
– A Semana de Arte Moderna chocou parte da sociedade ao trazer uma nova visão sobre os processos artísticos. E você deve ter acompanhado os acontecimentos aqui em Juiz de Fora com relação ao movimento de alguns artistas na celebração dos cem anos dessa manifestação. A sociedade continua não entendendo o significado do que ela propunha?
– A cultura, no Brasil, ela nunca foi protagonista nos orçamentos das políticas públicas, em qualquer das esferas. Eu já fui presidente do Conselho de Cultura de Juiz de fora. Quando tem muito dinheiro, nunca sobra para a cultura o que ela precisa. Quando tem pouco dinheiro, a primeira área a ser cortada é a cultura. Então, essa elite conservadora, que é massivamente presente nos lugares de poder, vai continuar se assustando com manifestações culturais como essa de juiz de Fora que eu acho brilhante. Juiz de Fora tem um encontro de compositores, claro que não sei como ficou com a pandemia, que acontecia nas primeiras segundas-feiras do mês se não me engano, com canções brilhantes, com compositores e compositoras do mais alto talento. Eu fui a alguns desses encontros, tinha um cheiro de Clube da Esquina, claro que com jeito de Juiz de Fora. E isso fica à margem. E a gente tem nomes muito importantes que, além de se preocuparem com suas carreiras, têm que lutar politicamente por elas. Quando eu era do Conselho de Cultura, o representante da música era o Roger Resende. Um cara superativo, combatente. Essas pessoas, além de serem artistas, têm que ser gestoras das próprias carreiras, empresárias, captadoras de recursos, têm que estar na Funalfa brigando por seus espaços. Então, é uma atuação que requer muito fôlego. Porque não existe política voltada para a cultura. A gente vive uma crise tão profunda na cultura que o primeiro ministério a ser cortado é o da cultura. A primeira lei a ser criticada é a Lei de Incentivo à Cultura. Isso é muito típico nos governos autoritários, e a cultura é uma resistência. Viver de cultura no interior de Minas, numa cidade como Juiz de Fora, conservadora, reacionária, que está envolvida, em seu cerne, com os movimentos políticos mais violentos do Brasil, como o golpe de 1964, a gente tem a cultura como resistência, e esses artistas brilhantes que chocam. E esses artistas, diferentemente dos modernistas, não são da elite de Juiz de Fora. O fardo deles é mais pesado.
– Qual o principal legado de Mario de Andrade você destacaria? E o que aprendeu com esse Mário de Andrade da Semana de Arte Moderna?
– O Mário de Andrade é um cara que morre muito cedo, por volta dos 50 anos, mas que produziu como ninguém. E foi um devoto da cultura brasileira na melhor de suas acepções, porque, diferentemente de muitos de sua geração, que valorizavam os ícones da cultura que são vinculados à elite econômica, ao poder político da Igreja Católica, ele estava falando de cultura popular. Ele estava no meio do Nordeste, mergulhado no Rio Grande do Norte, em certa fase de sua vida, muito por conta de sua amizade com Câmara Cascudo, estudando folclore brasileiro. Claro que ele dava importância às igrejas barrocas do Brasil Colônia, mas patrimônio não é só isso, ele já falava que cultura é muito além disso. E a gente demorou mais de 50 anos para imprimir isso num texto legal. Não só ele era de vanguarda, mas nós também somos muito conservadores. A gestão do patrimônio no Brasil é ainda hoje muito conservadora. Era ainda mais, só que o Mário já batia nessa tecla, e eu acho muito difícil a gente conhecer o completo Mário de Andrade. Ele era um ser múltiplo, um enigma, um cara que foi embranquecido pela historiografia brasileira. Um cara que teve sua sexualidade questionada, porque, muitas vezes, importava mais saber se ele era homossexual ou não, se era preto ou não, do que sobre sua obra, e isso diz muito do que é o Brasil, né? É um cara que, hoje, é ainda de vanguarda.
“Inda bebo no copo dos outros: por uma estética modernista”
Autor: Mário de Andrade
Organizador: Yussef Campos
Editora: Autêntica, 224 páginas.