Memória afetiva, toca-discos e ABBA

Por Marcos Araújo

18/11/2021 às 07h05 - Atualizada 17/11/2021 às 18h39

Quando eu era criança, eu tinha medo de ouvir ABBA. Naquela época, as vozes de Agnetha, Björn, Benny e Anni-Frid, quarteto que forma a banda e cujas iniciais viraram o acrônimo que dá nome ao grupo, chegavam a mim por meio do toca-discos da casa da minha avó. Sempre prestava atenção nas músicas que meus tios ouviam. Nesta época, os suecos já tinham se separado, algo que fui descobrir só na adolescência, porque a música deles era tão presente nos fins de semana da minha infância que era impossível imaginar que, àquela altura, eles já não estavam mais juntos.

Mas, como ia dizendo, eu tinha medo de ouvi-los, porque achava suas músicas tristes demais. Sem entender o que suas letras diziam, eu considerava canções como “The winner takes it all”, “Fernando”, “One of us” e “Chiquitita” muito melancólicas. “Chiquitita”, então, que tinha uma versão na voz da cantora brasileira-paraguaia Perla, me soava ainda mais taciturna. O fato era que, das músicas que encontrava nos vinis na estante da minha avó, as do ABBA eram aquelas que eu tentava evitar, na maioria das vezes, sem sucesso, porque estavam entre as favoritas da família.

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Mas o tempo passa e sua passagem é pródiga em mudanças. Eu cresci, fiquei adulto, e aquelas canções que outrora me traziam uma sensação de tristeza ganharam novos contornos. Suas melodias passaram a ter um tom de nostalgia, porque ficaram na minha memória afetiva. Todas as vezes que elas voltavam a tocar no rádio, eu lembrava da minha época de menino, da casa da minha avó, do toca-discos com o qual a gente tinha que ter muito cuidado para não estragar a agulha, dos vinis com capa de papelão, da companhia dos meus primos, da presença da minha vó. Passei a gostar do ABBA independentemente de qualquer julgamento que se possa fazer sobre a música deles. Eu gosto e pronto!

Resolvi falar da banda que criou a pegajosa “Dancing queen”, mas nem por isso menos genial, porque o grupo, depois de 40 anos, volta a ocupar as paradas de sucesso, como se dizia antigamente. E não só por isso. Suas músicas da década de 1970 e início da de 1980 fazem a trilha de vários vídeos no TikTok. A garotada que já tinha descoberto e continua descobrindo o ABBA no filme “Mamma Mia” e na sequência “Mamma mia! Here we go again”, embarcou no ritmo dos artistas septuagenários, inclusive minha filha de 10 anos. E isso é fantástico, porque prova a potência da música para atravessar gerações.

Eu não resisti e corri para conhecer as canções do novo álbum “Voyage”. A primeira que ouvi, que já é tida como um hit, é “Don´t shut me down”. E, ao ouvi-la, é como se Agnetha, Björn, Benny e Anni-Frid não tivessem se separado pelo hiato de quatro décadas. É possível encontrar na música, assim como nas demais que fazem parte do disco, o DNA do ABBA. Para 2022, o quarteto está prometendo alguns shows. As notícias dão conta de que não será uma turnê com a volta literal aos palcos com contato direto com o público, mas, no lugar dos quatro, o grupo será representado por hologramas criados por uma empresa fundada por George Lucas, aquele de “Guerra nas estrelas”. Imagina isso? É a ficção científica virando realidade.

Essa engenharia tecnológico-musical será possível graças a softwares de captação de movimentos, com sensores costurados nas roupas dos cantores, cujos avatares já foram apelidados de ABBAtares. Na minha opinião, acho que esse artifício não vai conseguir aplacar a saudade dos fãs, porque o bom mesmo seria vê-los em carne e osso e gogó no palco, mas é compreensível que, pelas idades de cada um, isso talvez não seja possível. Mas a notícia boa é o fato de que eles estão de volta, algo inédito no mundo da música em razão do intervalo de 40 anos. Vida longa ao ABBA e a todos os artistas que resistem ao tempo e aos modismos com seu talento e genialidade.

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Marcos Araújo

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