CPI da Pandemia e o tal “silêncio incriminador”
Já me ocupei, neste espaço, de algumas reflexões sobre o direito fundamental ao silêncio (e à não autoincriminação). Em texto intitulado “Qual silêncio, o do Capitão ou o do General?”, procurei apresentar ao leitor e à leitora essa conquista civilizatória. Ali procurei esclarecer que se trata de uma proteção entregue a todo cidadão – indistintamente. Vale para o Capitão (que berrava: “- CPI deveria ter pau-de-arara para torturar investigado!”) e vale para o General, amigo e escudeiro do Capitão, investigado da vez em uma CPI (sem pau-de-arara).
Fato é que o direito ao silêncio tem servido como fundamento para a concessão, pelo STF, de inúmeras ordens de “habeas corpus” em favor de envolvidos nos casos de corrupção na compra de vacinas pelo governo Bolsonaro. Por conseguinte, os interrogados na CPI que apura essas maracutaias têm o direito de permanecer em silêncio diante de indagações potencialmente autoincriminatórias.
Pausa para uma explicação e uma ironia. É insuportável ouvir seguidamente que “o STF concedeu a fulano o direito de permanecer calado”. Não! O STF pode ter “reconhecido”, “declarado”, “assegurado” esse direito em suas decisões, mas por favor: quem “concede” tal franquia é a Constituição (e não o STF!), a menos que se enxergue a coisa por uma visão tomada por um realismo jurídico radical.
A ironia: boa parte dos agraciados na CPI com “habeas corpus” concedidos pelo STF são virulentos detratores… do STF. Sorte deles que não obtiveram êxito em suas sanhas autoritárias, não?! Coisas dessa turma que toca o berrante pelo fechamento do STF, tudo em nome de uma obtusa ideia de democracia. Não há democracia sem jurisdição constitucional, pois não?
Voltemos, então. Algo chama a atenção nos depoimentos perante a CPI da Pandemia: parece haver se sedimentado por ali uma bizarra construção – o “silêncio incriminador”.
Descontentes com o silêncio exercido por investigados, membros da Comissão partiram para a estratégia retórica segundo a qual o uso do direito ao silêncio haveria de ser interpretado como “atestado de culpa”. Segundo notícia da Agência Senado de 19/08/2021, “O silêncio do sócio proprietário da Precisa Medicamentos, Francisco Maximiano, diante da maior parte das perguntas dos senadores, nesta quinta-feira (19), na CPI da Pandemia, é um atestado de culpa, na avaliação dos parlamentares”. O Senador Fabiano Contarato, por exemplo, afirmou, nesta mesma ocasião, que o silêncio de Maximiano permitia atribuir-lhe “a responsabilidade criminal por corrupção passiva, ativa, falsificação de documento”.
Mas essa figura tão presente nas sessões da CPI, o “silêncio incriminador”, tem lugar no mundo do direito?
Se estamos a falar de um mundo jurídico circundado por uma atmosfera democrática, certamente não. Não é por acaso que foi promovida, em 2003, uma importante mudança no Código de Processo Penal. Ali se lia (no art. 186): “Antes de iniciar o interrogatório, o juiz observará ao réu que, embora não esteja obrigado a responder às perguntas que lhe forem formuladas, o seu silêncio poderá ser interpretado em prejuízo da própria defesa”. Tinha-se estampado em cores vivas, nesse texto, um “silêncio incriminador”. Com a edição da Lei 10.792, de 2003, a redação do artigo (parágrafo único) assim passa a se colocar: “O silêncio, que não importará em confissão, não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa”.
Mas a sobredita Lei, em si, não inovou em coisa alguma. Desde 1988, a Constituição a assegura a todos o direito ao silêncio – que justo por ser um direito, não pode ser tal qual um bumerangue, que uma vez lançado ao ar, retorna e põe em risco o pescoço de quem se cala.
Fora do cinema não há silêncio “dos inocentes” ou “dos culpados”. Há silêncio (- ponto!), ato de autodefesa negativa ao qual não se pode associar uma confissão.
Que o relatório da CPI aponte os (des)caminhos que conduziram o governo ao fétido esquema criminoso em que as tenebrosas transações se davam sobre uma mesa de restaurante farta de chopp, dinheiro e cadáveres (esses, sim, inocentes perpetuamente silenciados pela ganância).
Mas que não se caia na esparrela das retóricas fáceis (“quem cala consente…”) estranhas à democraticidade processual vigente, sob pena de se contaminar seriamente o material que servirá à responsabilização da organização criminosa que trocava vacina por propina.