Arthur Dapieve: “Escrever o eu pelo eu, numa egotrip só, acho que não serve a ninguém”

Por Marisa Loures

12/01/2021 às 07h00 - Atualizada 12/01/2021 às 20h13

Autor de livros, como “Do rock ao clássico: Cem crônicas afetivas sobre música”, o jornalista Arthur Dapieve fala sobre o gênero crônica, assunto de oficina que ele comanda nesta semana pelo Instituto Estação das Letras – Crédito Divulgação

O mineiro Fernando Sabino, certa vez, escreveu que “crônica é tudo o que o autor chama de crônica”.  Quando pediram para o velho Rubem Braga definir o gênero, ele disparou que, “se não é aguda, é crônica.” Esse tema também já protagonizou, é claro, entrevistas que fiz com alguns escritores. “A crônica é mais formato que conteúdo. Não importa o que você escreveu, se for agradável, divertido e se tocar a pessoa que está lendo, de maneira lírica ou melancólica, atingiu sua função primeira. O que ela não deve causar é aborrecimento”, respondeu-me, em julho de 2013, Antonio Prata. Na ocasião, Marcia Tiburi, ao discorrer sobre o gênero, defendeu que o cronista “é um filósofo da vida simples. Sujeito que contempla atento – e sem julgamento – a vida que se apresenta a ele.” Já o escritor Affonso Romano de Sant’Anna, autor de três crônicas sob o título de “Teoria da crônica”, alertou-me que crônica “é coisa de muita responsabilidade, pois você tem o poder de modificar a vida de uma pessoa com uma frase.” E, enérgico, ele sentenciou que “não se deve confundir a crônica com blá-blá-blá”.

O assunto não se esgota, e retorno a ele nesta entrevista com o jornalista Arthur Dapieve. Durante 25 anos, Dapieve escreveu uma coluna para o jornal O globo, e, figurando entre os grandes nomes do gênero na atualidade, comanda, nesta semana, uma oficina de crônica pelo Instituto Estação das letras. A oficina é virtual. Começou nesta segunda-feira (11) e também será realizada nesta quarta (13) e sexta-feira (15), das 19h às 21h.

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“Escrever crônicas e também lê-las é necessário, porque a crônica introduz um momento de respiro, de reflexão, no meio da leitura do noticiário, seja num jornal, numa revista. E, hoje em dia, claro, na internet. Não que esse respiro, que essa parada, seja uma coisa necessariamente leve. O Carlos Heitor Cony, por exemplo, tem uma crônica tristíssima e linda dedicada à Mila, uma cadela que ele teve. É uma forma também de se relacionar com a realidade, com o noticiário, com as coisas cotidianas. Essa é a charada da crônica, que é um gênero meio jornalístico e meio literário. Isso a torna muito acessível, muito disseminada. E, também, talvez, um gênero mais fácil de você se relacionar com o leitor”, afirma Dapieve,  também professor de jornalismo na PUC-Rio, crítico musical e um dos debatedores da bancada do programa Estúdio I, da Globo News.

Dapieve ainda é autor de livros, como “Renato Russo – O trovador solitário” (Agir, 192 páginas), que ganhou nova edição em 2020 para marcar os 60 anos de nascimento do líder do Legião Urbana, e  do “Do rock ao clássico: Cem crônicas afetivas sobre música” (Agir, 256 páginas), lançado em 2019, reunindo textos que ele publicou no jornal O Globo ao longo do um quarto de século.

Como participar da Oficina da Crônica

Quem quiser participar da “Oficina da crônica”,  ainda dá tempo. Basta entrar em contato pelo e-mail iel@estacaodsletras.com.br ou pelo whatsApp 21-99127-4088. Também nesta quarta (13), a escritora Suzana Vargas começa a sua oficina introdutória sobre “Gêneros Literários”. Ela segue com a programação no dia 14 e 15 de janeiro, das 19h às 21h.

Marisa Loures – Rubem Braga é considerado um dos maiores cronistas que nosso país já teve. Diferentemente de outros escritores, ele teve uma vida toda dedicada, somente, a esse gênero. Sabemos que os tempos são outros, os valores são outros, portanto, o gênero que consagrou Rubem Braga mudou. Por onde anda a crônica do velho Rubem Braga? Ela ainda existe? Qual o perfil do cronista contemporâneo?

Arthur Dapieve – O Rubem Braga lapidou um tipo de crônica tão espetacular que se tornou, praticamente, sinônimo de crônica. Só que a crônica surge muito antes dele, e surge comentando os fatos do cotidiano, com José de Alencar, Machado de Assis, dois outros grandes escritores, mas que encaravam a crônica de uma maneira completamente diversa. Eles pegavam os acontecimentos da então capital do Império e comecinho, no caso do Machado, capital da República, e davam um molho. Comentavam aquilo sob a ótica do José de Alencar, do Machado de Assis, entre outros. E Rubem Braga, naquele lirismo incrível, acabou marcando uma geração importante de outros cronistas e de leitores, e eles passaram a associar crônica somente ao estilo do Rubem Braga. O estilo dele ainda existe sim, e cito, por exemplo, um cronista aqui do Rio de Janeiro, Joaquim Ferreira dos Santos. É um tributário de crônicas, é um apreciador de todo tipo de crônica, e o tipo de crônica dele remete bem claramente, no meu entender, à crônica do Rubem Braga. Isso é somente um exemplo. A gaúcha Martha Medeiros também pratica esse tipo de crônica. Então, é uma vertente muito bem-sucedida da crônica que ainda está viva sim.

– O também jornalista e cronista Humberto Werneck, em entrevista ao jornal Cândido, declarou que a crônica perdeu muito espaço ao longo dos anos. Ele disse que o que a gente tem muito hoje é coluna e que, às vezes, o que aparecem como crônica são artigos e editoriais. Como definir crônica, um dos tópicos abordados na sua oficina, e como diferenciá-la de outros gêneros? Ela caminha para o jornalismo ou se fundiu com a ficção?

O próprio Joaquim Ferreira dos Santos tem uma definição incrivelmente ampla de crônica. Ele diz que crônica é tudo aquilo que você chama de crônica. Então, definição dela é sempre uma coisa muito complicada. Departamentos de Letras nas Universidades fazem isso o tempo todo, mas tem sempre uma crônica que cria uma exceção à regra. Então, talvez, ela seja mais feita de exceções do que de regras. Mas o Werneck tem razão. Ela perdeu espaço na medida em que muitas coisas hoje em dia são colunas, são colunas no sentido de que elas são comentários sobre o cotidiano, mas elas não têm aquele tempero, não têm aquela cobertura da literatura, de uma linguagem literária mais elaborada. Essa é uma diferenciação da crônica, e essa predominância da coluna sobre a crônica se dá muito por conta da própria profissionalização da profissão de jornalista. A gente, durante muito tempo, desde 69 até mais recentemente, era obrigado a ter diploma para escrever em jornal, e isso fez com que o texto jornalístico mais hard news, mais noticioso, se aproximasse muito do texto da crônica. Quase todo mundo que você vê tendo coluna hoje em dia em jornal é de origem jornalística. Isso acaba moldando o texto, tornando-o menos diverso do que ele já foi no passado. Então, essa intermediação entre jornalismo e ficção sempre aconteceu, só que os componentes, os ingredientes, tinham uma proporção diferente.

– E é comum a pessoa que tem coluna diária ou semanal em jornal sofrer com a obrigação de ter o que escrever. Vários autores já escreveram crônicas sobre a falta de assunto. Carlos Heitor Cony, por exemplo, chegou a descrever o próprio bigode em uma de suas colunas. Isso já aconteceu com você? Como saiu dessa situação? E tudo cabe na crônica? Ou ela tem limites?

 – A falta de assunto é, realmente, um dos temas clássicos da crônica. Aflige muita gente, mais uns do que outros. O Zuenir Ventura, por exemplo, muito experiente, diz que sofre até hoje para escrever um texto, e ele faz uma crônica naquele sentido antigo, machadiano. Comentários de fatos da semana, porém com a ótica, com o molho, com o charme do Zuenir. Todo mundo já escreveu uma crônica sobre falta de assunto, só que, às vezes, ela não é explícita, ela é implícita, né, e aí eu imagino que, em alguns casos, isso acabe derivando para um artigo, para uma coluna sobre fatos do cotidiano sem aquela inspiração literária toda. Digo isso porque comigo, quando eu escrevia uma coluna semanal no Globo, às vezes, também não tinha um grande assunto quicando na área. É difícil imaginar um tempo em que não havia um grande assunto quicando na área da ótica de 2021, mas existiu esse tempo. E aí o que eu fazia era olhar para as minhas estantes de discos, de livros, e falar assim: “Hum, gostaria de escrever sobre esse disco, sobre esse livro”. Mesmo que esse livro, esse disco, não fosse um lançamento, fosse uma coisa do passado, mas tivesse uma história legal para contar, ou eu tivesse alguma coisa que eu julgasse interessante para contar. Eu acho que a crônica não tem limite não. Esse era meu estratagema. Outros escrevem sobre algum fato do seu cotidiano, menor, mas com aquele molho característico da crônica. Um dos baratos dela é exatamente não ter uma receita de bolo. Se você pegar uma antologia de crônicas, de vários autores, vai encontrar crônicas das mais diversas, inclusive, algumas que você não tem nem certeza se, de fato, elas aconteceram mesmo daquela maneira, ou se elas são, simplesmente, peças da ficção adaptadas à realidade.

– É nas páginas de jornais onde estaria o melhor do gênero no século XXI? Ou cada vez mais e melhor a crônica encaixa-se aos livros e à internet, uma vez que muitos autores têm utilizado o Facebook e até o Instagram para divulgar seus textos?

Hoje em dia, com o encolhimento, a quase desaparição do jornal em papel, ele deixou de ser o único habitat da crônica. A crônica ainda está lá, por hábito, por conta da faixa etária da maior parte dos leitores do jornal em papel, mas algum tempo ela já vinha se exercitando na internet que, no entanto, repele, rejeita, um pouco, textos muito longos. Acho interessante usar o Instagram, por exemplo, para publicar crônicas, textos bem curtinhos, mas já existiram crônicas bem curtas no passado também. Então, ela é um jeito de botar para fora alguma coisa. E aí o livro é só o corolário disso. Eu acho que a crônica não aparece primeiro em livro. Acho que, como o próprio nome indica, como ela tem uma relação com o tempo, interessante e importante, ela precisa ser posta na rua ao teste da leitura imediatamente, seja num jornal, numa revista, seja na internet. Então, o livro, ele coleta isso, aquelas que resistem melhor ao teste do tempo, aquelas que já foram publicadas, que já disseram o que tinham para dizer para aquele tempo específico, mas podem, eventualmente, dependendo da sua qualidade, falar algo também para outros tempos, para um futuro indefinido um pouco mais à frente.

– Em geral, a crônica é feita para a circunstância. Para o seu mais recente livro de crônicas, intitulado “Do rock ao clássico: cem crônicas afetivas sobre música”, você selecionou textos que publicou ao longo de 25 anos no jornal O Globo. Ao selecionar os textos para o livro, era uma preocupação sua escolher aqueles cujo interesse não tivesse se esgotado na publicação nas páginas do jornal?

Sim. Ao selecionar os cem textos sobre música publicados no Globo em 25 anos de coluna, eu busquei fazer com que fossem os textos que tivessem sobrevivido. Às vezes, o texto pode ser bom na semana, mas não sobrevive à leitura um mês depois. Então, minha preocupação foi não só tratar de música pertinente, mas também que o texto tivesse uma pertinência, fosse um texto interessante para ser lido daqui a, sei lá, um ano, dois, três, às vezes, 25 anos, porque alguns dos textos coletados ali são do começo da coluna no jornal. A gente nunca sabe se a crônica vai sobreviver. E esse é um dos baratos dela, é sempre um risco. E aí você se surpreende que aquela crônica menorzinha, aquela que você não dava muito por ela, é aquela que fica na memória das pessoas. Ao mesmo tempo, como jornalista, nesse livro, eu também tive a preocupação de selecionar crônicas que fossem informativas. Não só a expressão do lirismo, e você está certa quando diz que a primeira pessoa foi importante ali, mas também, se alguém quiser consultar aquilo para escutar alguma coisa, ou, depois de escutar alguma coisa, encontre ali elementos, eu não consigo fugir do fato de ser jornalista, encontre ali elementos para ter uma audição favorável, uma audição enriquecedora. Então, houve esta tripla preocupação: ter substância, ter estilo, mas também, na minha opinião de momento, ao menos, sobreviver ao teste do tempo e poder ser uma leitura agradável e instrutiva muito tempo depois de elas terem sido publicadas nas páginas do Globo.

– E já que falamos no livro, suas crônicas ali publicadas são confessionais, escritas em primeira pessoa. O jornalista carioca Mauro Ferreira disse que elas “sempre vão (muito) além do umbigo do autor por embutirem reflexões sobre a vida e o mundo a partir da música.” Aí me lembrei de uma conversa que tive há alguns anos com Affonso Romano de Sant’Anna. Ele me disse que “o cronista é um jornalista a quem é permitido falar na primeira pessoa, mas seu ‘eu’, como na poesia, tem que ser de utilidade pública.” É nisso que você acredita também?

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Bem, o juízo do Mauro Ferreira sobre o “Do rock ao clássico” é muito generoso. Fico feliz com o que ele escreveu e dizer que o umbigo vai além do falar de si próprio, né? Você pode pegar a primeira pessoa para falar do mundo, para falar sobre a música. E concordo inteiramente com isso que o Affonso Romano te disse, que ao cronista é permitido falar na primeira pessoa, mas essa primeira pessoa tem de ser de utilidade pública. Ou, como diz um professor aqui da UFRJ, a crônica tem que ser pessoal, mas, ao mesmo tempo, compartilhável. Outras pessoas precisam se identificar com elas, se sentirem representadas, que é outra maneira de dizer isso que o Affonso Romano disse. O nome desse professor é Paulo Roberto Pires, que é jornalista também. Então, acredito que sim, que o eu pode aparecer se ele for justificado, por conta dessa mesura, desse serviço que ele faz ao leitor. Escrever o eu pelo eu, numa egotrip só, acho que não serve a ninguém. Pode servir, até por razões terapêuticas, aos autores, mas não servirá também aos leitores. Então, acredito realmente nisso. Tanto que, durante algum tempo, inclusive, eu não usava a primeira pessoa em crônica. Eu fui externar a primeira pessoa de uma maneira mais escancarada quando houve a morte da minha mãe. É uma crônica que está em outro livro. E aí eu não tinha como falar da morte da minha mãe sem usar a primeira pessoa. Claro, é a morte da minha mãe, era uma coisa pessoal, mas todos nós compartilhamos essa dor em algum momento de nossas vidas, ou tememos sentir essa dor no futuro. Então, concordo inteiramente com essa percepção bem sagaz do Affonso Romano.

Oficina da Crônica

Com o jornalista e escritor Arthur Dapieve

Dias 11, 13 e 15 de janeiro, das 19h às 21h.

Oficina sobre Gêneros Literários

Com a escritora Suzana Vargas

13,  14 e 15 de janeiro, das 19h às 21h

Inscrições: iel@estacaodsletras.com.br ou pelo whatsapp 21-99127-4088

 

Marisa Loures

Marisa Loures

Marisa Loures é professora de Português e Literatura, jornalista e atriz. No entrelaço da sala de aula, da redação de jornal e do palco, descobriu o laço de conciliação entre suas carreiras: o amor pela palavra.

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