Lya Luft: ‘Eu sou uma ficcionista antes de tudo’
Lya Luft faz 82 anos no dia 15 de setembro. No texto “Oitenta”, que integra seu novo livro de crônicas, “As coisas humanas” (Record, 320 páginas) – lançado em homenagem ao filho André, morto, em 2017, aos 51 anos, vítima de uma parada cardiorrespiratória enquanto surfava -, escreve sobre como é a vida nessa idade. Como se estivesse do nosso lado, conversando, ela começa suas reflexões narrando um episódio em família. “Tempos atrás, adolescentes da casa falavam entre si, com orgulho, de quantos anos logo estariam fazendo: duas fariam quinze, a irmã, dezenove. O primo vai fazer quinze, comentaram. E calcularam a idade dos outros primos, morando longe. Comentei com naturalidade que em três anos eu faria oitenta. Silêncio penoso, depois: ‘Pô, vó, oitenta é pesado!’”. Ela começou a rir. E sua reação está ligada à forma tranquila como lida com a passagem do tempo.
“Quando criança, eu queria ser moça. Quando moça, queria ser adulta mais velha. Encaro isso com muita naturalidade. Você tem infância, como você tem adolescência, maturidade. Agora, a velhice. Acho que nunca tive este problema de pensar: ‘Meu Deus, agora estou com rugas, agora eu aumentei muito de peso, agora eu já não posso fazer coisas que fazia antes!’. Não tenho mais muita agilidade, mas o coração, no fundo, é o mesmo. As amizades boas permanecem décadas a fio, tenho uma família muito linda, netos e netas. Ainda tenho um filho e uma filha e um parceiro já de muitos anos também. Para mim, a passagem do tempo é apenas natural. A gente vai começando a ter mais uma filosofia de vida. Os seus valores, as suas maneiras de se comportar, de pensar, de tratar a pessoa. Eu acho natural. Não tive nunca nenhum problema com a velhice. Eu só não gostaria de, uma velhice, mais adiante, quem sabe, com muita doença, com muita fragilidade. Ninguém gosta de doença, de sofrimento. No mais, estamos aí, faz parte da natureza nascer, crescer, envelhecer e ir embora”, confidencia a autora, em entrevista a esta coluna.
São 28 livros publicados desde o lançamento do romance “As parceiras”, em 1980, e ela planeja mais um. “As coisas humanas” é a primeira obra enviada para as prateleiras após a perda do seu André. Aliás, é ele o personagem de textos emocionantes, como “O menino e sua mãe” e “Dicionário para crianças”. Nas páginas da publicação, também encontramos escritos sobre gentileza, política, a chamada inspiração, amizade e muitas e muitas outras coisas humanas. “Lya Luft é generosa: em tempos de literatura ensimesmada, a escritora – criadora radical – mais uma vez convida o leitor a ter lugar em sua intimidade. Não terá sido fácil. Mas esta é uma artista que encara a vida – que enfrenta a dor maior da vida – com a costura das palavras”, adianta o texto da orelha do livro. Nesta entrevista, ela fala sobre a dor da perda do filho, planos, como tem sido os dias confinada por causa da pandemia, amizades (algumas desfeitas por divergências políticas) e o “gênero Lya Luft”.
Marisa Loures – “As coisas humanas” é o primeiro livro que escreve após a morte do seu André. A senhora confidencia que o garoto do texto “O menino e sua mãe” é ele. Como foi escrever esse e outros textos, como o do dicionário, que a fazem se lembrar dele? Como foi voltar a escrever após essa perda tão dolorosa? De onde vem a força para superar essa perda?
Lya Luft – Morte de filho a gente não supera. A gente vai se acostumando a viver com essa falta, com essa dor, mas não se supera no sentido de que, realmente, a gente nunca mais é a mesma. Esse era um filho muito chegado a mim, um grandalhão, agrônomo, casado, com filhos. Nos últimos anos, trabalhava na África, administrando uma grande fazenda em Moçambique, fazendo muito trabalho humanitário com os trabalhadores de lá. Morreu surfando em Floripa, onde era a residência deles e foi, realmente, a pior coisa que já me aconteceu. Mas eu acho que, depois de um tempo, quando o amor foi bom, as coisas boas predominam e dão força para gente. Estou me refazendo sim.
– E quais são seus planos?
– Meus planos são viver dia a dia, com a minha família, meu marido, minhas coisas. Estou publicando este livro agora, que é dedicado ao André. Tenho agora um Instagram, onde, de vez em quando, leio pedaços desse livro e de outros. Meus projetos são viver uma vida direitinha, uma vida decente. Sempre fui muito caseira, sempre fiquei muito em casa, gosto disso.
– Em “Para quem acredita existe”, descobrimos que a senhora é uma pessoa que gosta muito de celebrar e de trocar afetos. Em meio à pandemia, estamos privados desta troca de afetos presencial. Como está fazendo para dar conta deste momento? Como tem sido seus dias?
– A questão da pandemia me chateia muito porque, sendo eu de alto risco, estou fazendo, agora em setembro, 82 anos, e, há alguns meses, sofri um infarto, eu sou de altíssimo rico. Então, perdi a alegria, pelo menos por enquanto, da vinda das pessoas. Um dia almoçava as netas, um dia almoçava outro filho com sua família. Outro dia eu saía para o ateliê de uma amiga, depois ela almoçava comigo. Então, esse contato humano meu ficou reduzido, e isso realmente é uma coisa que me entristece, que me chateia muito.
– Por falar nisso, no texto “O elefantinho gentil”, a senhora clama por um mundo em que as pessoas sejam bondosas e gentis. Alguns acreditam que essa pandemia veio, justamente, para trazer renovação ao nosso planeta. A senhora já parou para pensar sobre isso? Acredita nesse mundo melhor depois disso tudo?
– Não sei se, como eu disse no texto “O elefantinho gentil”, sendo um pouco otimista, se as pessoas vão ficar melhores depois dessa pandemia, porque ainda está, na verdade, em pleno andamento. Uma peste furiosa, o mundo inteiro parou. Grandes cidades onde a gente gostava de passear estão desertas, né? Roma, Londres, Veneza, enfim. É um momento muito triste, muito grave. Nem todas as pessoas estão se cuidando. É muita gente sem máscara, muita gente fazendo festa, viajando, etc. Não vai passar tão cedo. Se vier vacina, bom. Vamos cuidar dali para frente, mas os que já morreram e os que já estão doentes vão ser sempre um peso para a nossa humanidade. Acho que a gente vai ter que reconstruir um pouco do nosso convívio social, nosso convívio humano, nosso modo de trabalhar. Sempre digo que acho que as pessoas boas vão, talvez, ficar melhores, e as pessoas não boas vão ficar piores, com mais raiva, mais rancor, mais agressividade. Vejo muita agressividade, como aconteceu na época das eleições, agora, na época da pandemia. As pessoas se xingam muito, nas redes sociais, sobretudo. E, infelizmente, a doença foi, pelo menos aqui no Brasil, misturada com política. E isso é uma coisa muito triste.
– “As coisas humanas” é um livro em que senhora celebra com o leitor, seu fiel amigo imaginário, “muitas coisas boas e belas” e também divide as coisas tristes. “Lya Luft é generosa: em tempos de literatura ensimesmada, a escritora – criadora radical – mais uma vez convida o leitor a ter lugar na sua intimidade”, diz o texto da orelha do livro. É preciso ter coragem para falar o que sente, dividir com pessoas desconhecidas momentos íntimos?
– Eu, normalmente, não escrevo sobre minhas intimidades. O livro “As coisas humanas”, que dediquei ao meu filho falecido, André, tem algumas passagens assim, mas não é no fundo um livro triste, um livro de luto. Conto, inclusive, coisas engraçadas dele e dos meus outros filhos quando crianças para quebrar um pouco uma espécie de solenidade que, talvez, as pessoas esperassem no livro. Mas é um livro como tantos outros que escrevi sobre a vida, sobre as pessoas. Então, não é preciso ter coragem, porque a minha intimidade, a não ser o fato de eu ter perdido esse filho, normalmente, não exponho. Eu sou uma ficcionista antes de tudo, isto é, eu conto histórias, quase tudo inventado. E contei uma verdadezinha ou outra no meio. Ela, em geral, está bem disfarçada.
– Seu editor escreveu que existe o “gênero Lya Luft”. A senhora tinha consciência disso?
– Se existe um gênero Lya Luft, não sei. Isso foi uma invenção do meu editor, Carlos Andreazza, da editora Record, no Rio. E acho que talvez ele tenha razão, porque eu tenho muita liberdade quando escrevo. Escrevo do jeito que eu gosto, as coisas que eu quero. De uns anos para cá, por exemplo, quase cada capítulo de um livro meu é introduzido por um poema. Já me perguntaram: “Por que a senhora faz assim?”. Porque eu gosto.
– No texto “Erros de pessoa”, escreve sobre as amizades e os afetos desfeitos por causa de diferenças políticas. Hoje, passada a eleição, acredita no resgate dessas amizades desfeitas?
– Eu, realmente, tenho amizades de muitas décadas. Tenho algumas amizades mais novas, tenho amizades com pessoas mais jovens. Muitas amizades da minha idade já morreram. Eu perdi algumas poucas por questões, realmente, ideológicas, questões de política, o que eu acho uma coisa muito triste. Mas muito poucas em relação ao número grande de amizades e o afeto dos leitores, o carinho, o interesse, e dos que agora me seguem no meu Instagram. São coisas que compensam aquelas amizades não tão reais, que se deixam abalar por interesses políticos, opiniões, por ideologias. Acho isso uma coisa muito pobre. O mundo está pobre de afetos e tem que procurar se enriquecer. Afetos verdadeiros, alegres e sérios quando é preciso, porque, fora do afeto, do amor e da amizade, não tem muita salvação não, né?
– Há três anos, o escritor Affonso Romano de Sant’Anna lançou o livro “A vida é um escândalo”, celebrando seu octogésimo aniversário. Ele me disse que, aos 80 anos, a vida é, realmente, um escândalo. Em “As coisas humanas”, a senhora escreve sobre isso. Fale um pouco mais sobre como é, para a senhora, a vida aos 81 anos.
– Daqui a pouco faço 82 anos. Gosto muito do Affonso Romano, acho bonitinho ele dizer que a vida é um escândalo. Eu sempre encarei as coisas com muita naturalidade. No fundo, eu sou sempre a mesma. Claro que o corpo muda, você tem rugas, está mais cansada, tem que cuidar um pouco mais da saúde. Acho que conservei, sempre, uma coisa que não é virtude, é um jeito meu de ser, um amor à vida, um interesse pelas pessoas, um amor muito grande pela natureza, pela beleza da natureza, pela juventude, pela arte de todas as formas. Então, acho que a única coisa que mudou é isto: um pouco mais experiente, um pouco mais cansada, mas, no fundo, no fundo, sempre a mesma Lya que, há uns seis, sete anos, queria entender o mundo. É claro que a gente nunca vai entender, né? E isso é um dos fascínios da vida.
Sala de Leitura – Toda sexta-feira, às 11h35, na Rádio CBN Juiz de Fora (FM 91,30)
“As coisas humanas”
Autora: Lya Luft
Editora: (Record, 320 páginas)