Mais de mil

Por Nara Vidal

24/05/2020 às 06h55 - Atualizada 23/05/2020 às 14h54

Piada:

substantivo feminino.

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1- Dito ou pequena história espirituosa e/ou engraçada; ANEDOTA; CHISTE; PILHÉRIA

2- Qualquer pessoa ou coisa que não mereça crédito ou não tenha qualidade: A fraude nas eleições mostrou que a apuração dos votos era uma piada.
(fonte: Aulete.)

Uma piada é bem sucedida quando há o riso comum.

Se há membros no grupo que não acharam a piada engraçada, provavelmente os que não riram têm razão.

Em circunstâncias normais ninguém faz graça com a morte ou doença alheias, certo?

No entanto, durante esta semana, enquanto em um único dia, mais de mil cidadãos brasileiros perdiam suas vidas por causa do vírus e pela falta de uma política de Saúde que garanta a eles o mínimo de dignidade, coerência e proteção, houve um representante de algumas pessoas que, rindo muito, fez piada com o assunto:

“Quem é de direita toma cloroquina, quem é de esquerda, Tubaína.” Esse deboche, feito numa live dia 19 de maio, coincide com o dia em que o Brasil registrou mais de mil mortes em um período de vinte e quatro horas. Nenhuma menção às famílias desamparadas e em luto. Nada. Teria sido simples, mesmo que fosse só para constar: sinto muito pela perda de mais de mil cidadãos brasileiros. Mas não. Ficou lá a morte como matéria-prima da zombaria, elemento risível, razão para troça. É um senso comum, mortais que somos, não ridicularizar o fim alheio porque uma hora nós chegamos lá. Mas rir escancaradamente numa transmissão ao vivo no dia em que mais de mil famílias lidavam, não só com a tragédia da perda, mas com a dificuldade impensável de enterrar dignamente o ente querido, é de uma crueldade assustadora. Parece até que existe um plano para reduzir o número de brasileiros, não é? Tudo o que tem sido feito ou não tem sido feito para a população é pautado em dificultar cada vez mais uma existência digna para quem resta aqui, teimando em sobreviver numa terra de ninguém. É um deboche do mais baixo nível, da mais profunda deselegância. Uma montanha de brasileiros desaba feito um prédio em chamas e nem uma nota sobre o assunto. Em vez disso, escárnio.

“Quem é de direita toma cloroquina, quem é de esquerda, Tubaína.” Quem, com algum fiapo de decência consegue rir desse comentário inconsequente, sombrio e nefasto?

A piada nós sabemos bem quem é.

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Leitor, o meu plano era escrever sobre outro assunto, mas foi impossível. Confesso ainda que colocar essas palavras uma atrás da outra foi uma grande dificuldade. Tenho sentido o luto dos outros. Cada morte que acontece é um mundo inteiro que acaba. Estou rodeada por óbitos e se me olhar dentro dos olhos verá o reflexo opaco do fim. Os brasileiros estão morrendo por fora e por dentro – falo do vírus, do desaparecimento do abraço, além da vergonha que nos mata repetidas vezes por dia.

Peço desculpas pela minha dificuldade esta semana e sinto muito por todos os brasileiros que perderam pessoas queridas até aqui.

Gostaria de propor algo que não é visto lá no alto do palácio e talvez sirva de exemplo: proponho respeito, enquanto a cura não for possível.

P.S. Como comecei o texto com o significado da palavra piada, pensei em concluir com o conceito de verme. É uma longa definição, mas destaco aqui uma das características mais popularmente conhecidas: vermes se alimentam de morte.

Nara Vidal

Nara Vidal

Nara Vidal é escritora. Nascida em Guarani, Zona da Mata mineira, em 1974, há quase duas décadas vive em Londres. É autora de mais de uma dezena de títulos, a maioria deles publicados em português. Dentre eles, os infanto-juvenis "Dagoberto" (Rona Editora) e "Pindorama de Sucupira" (Penninha Edições), os de contos "Lugar comum" (Passavento) e "A loucura dos outros" (Reformatório), e o romance "Sorte" (Moinhos), premiado com o terceiro lugar no Oceanos de 2019.

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