Irresponsabilidade, cegueira e Shakespeare

Por Marcos Araújo

26/03/2020 às 06h50 - Atualizada 25/03/2020 às 19h12

O que se pode pensar numa hora assim? Estamos pagando o preço por uma eleição realizada em meio ao impacto das notícias falsas, da polarização que dividiu o Brasil e também pela nossa inércia, enquanto cidadãos, para entender e procurar entender, pedagogicamente, como funciona a política e seus meandros. Se não são essas as justificativas, o que mais podemos considerar como motivo para que o país chegasse ao ponto que chegou?

Havia todas as evidências de que não seria diferente. Entre elas, uma que ficou marcada, como a homenagem feita a um torturador, assim como diversos vídeos nos quais é propagada a mensagem de que os militares mataram pouco e “tinham que ter matado pelos menos uns 30 mil” e “se morrerem inocentes tudo bem”.

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Todavia, apesar de todas essas mostras de nenhum apreço pela vida humana, houve a vitória nas urnas. Não dá para nos sentirmos enganados, mas culpados. E essa é uma constatação que nos chega, infelizmente, em um momento crítico, pois há uma pandemia varrendo o mundo. Até o momento da escrita dessa coluna, o novo coronavírus já tinha matado mais de 17 mil pessoas ao redor do planeta e 57 no Brasil.

Com o pronunciamento oficial que vimos na televisão, na noite de terça-feira (24), fica bem claro o desprezo pela vida, principalmente a dos pobres, e a falta de capacidade para ser uma liderança. Daquelas, inclusive, que sabe usar o momento para falar o que o povo quer ouvir e, assim, aumentar o seu capital simbólico de forma positiva. Mas, nem isso! Há quem diga que tudo é estratégia e faz parte de um plano maior, chefiado por capital estrangeiro. Contudo, o certo é que, no que assistimos e ouvimos na TV, o que se sobressai é um desespero pela sobrevivência política.

Na contramão das evidências científicas, do que recomenda a Organização Mundial de Saúde (OMS) e até de seu próprio Ministério da Saúde, o presidente brasileiro fez pouco da gravidade do coronavírus, classificando a doença como uma “gripezinha” e um “resfriadinho”. Não houve nenhum tipo de empatia e respeito pelos familiares das pessoas mortas pelo Covid-19. Além disso, mais uma vez, tentou jogar a população contra a imprensa, acusando-a de “espalhar a sensação de pavor” e ignorando, completamente, que o jornalismo profissional, sério e competente tem se esforçado para desmentir fake news e alertar as pessoas acerca do perigo e das formas de prevenção contra a pandemia.

De forma perplexa, tivemos que ver e ouvir o presidente da nação criticar a interrupção preventiva das aulas e do comércio e fazer um chamamento ao povo para que voltasse à “normalidade”, deixando o isolamento social, que é a forma que outros países vêm usando para desacelerar a disseminação do vírus.

Este momento pelo qual o Brasil passa faz-nos lembrar, de certa forma, da frase cunhada por William Shakespeare, na peça Rei Lear. Uma tragédia, datada de 1606, e que já demonstrava a preocupação sobre quem tomava decisões importantes por outras pessoas. O trecho é o seguinte: “Que época terrível é esta, em que os loucos dirigem os cegos?”. Esse pensamento shakespeariano encontra ressonância em um ditado popular que também cabe para analisar a época atual: “O pior cego é aquele que não quer ver”.

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Marcos Araújo

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