Zuenir Ventura: “A pessoa tem direito de ser de direita e de esquerda. A questão é que tem que ser subordinado às regras da democracia”
Zuenir Ventura trabalhava na redação da revista “Visão”em um dia de março de 1968. No restaurante ao lado, Edson Luís era assassinado por policiais militares durante um confronto. Ele e o amigo Ziraldo viram quando os estudantes carregavam o corpo do jovem. Dois meses depois, quando uma onda de protestos tomava conta da França, Zuenir estava em Paris. Por causa da paranoia da época, estar naqueles dois momentos fez com que suspeitassem de que ele era “o olho de Moscou” e que “nada na impressa acontecia sem passar por ele”. Contudo, ele só foi saber disso algum tempo depois, ao ter acesso aos documentos do Dops. Em dezembro daquele mesmo ano, logo depois do AI – 5, o jornalista foi preso. Ficou três meses atrás das grades. Sentiu na pele o que foi a Ditadura Militar. Por isso é tão enfático quando a conversa é sobre democracia.
“O Brasil hoje está melhor por uma razão: mal ou bem, a gente tem a democracia. Isso faz uma diferença colossal. Naquela época, realmente, a gente vivia uma ditadura, embora hoje a gente tenha acenos, vontade, uma espécie de nostalgia do que aconteceu. Não há razão para ter saudade nenhuma daquele tempo. Para nós, jornalistas e escritores, para quem pensava, era impossível. Você era ameaçado de tortura. Acho que hoje, com todos os problemas, temos a democracia. É por isso que acho uma loucura essa tentativa de volta. E há grupos querendo isso. Ou é por causa de ignorância ou é sei lá por quê. Nossa democracia está imperfeita, está incompleta, tem todos os problemas, mas o fato de você ter liberdade para falar, discutir, xingar, é importante”, enfatiza o jornalista, que vem a Juiz de Fora, nesta terça, dentro do projeto “Grandes escritores”. A partir das 19h30, ele e o escritor Nelson Motta conversam com o público, no Cine-Theatro Central. A entrada é gratuita, e os convites devem ser retirados na recepção do teatro, entre 9h e 12h e 14h e 17h, ou na Secretaria da Pró-Reitoria de Cultura, no Campus da UFJF.
“1968: O ano que não terminou”, de Zuenir Ventura, é um dos livros mais emblemáticos sobre o período. Em 2018, 50 anos depois daquele ano revolucionário, a obra ganhou nova edição pela editora Objetiva. Para Zuenir, 1968 é um mistério. Deixou legados e ainda não acabou, o que justifica o interesse por ele. Aos 87 anos, Zuenir Ventura está produzindo ativamente. Escreve a coluna para o Jornal ‘O Globo”, viaja para palestras no Brasil afora, vai à Academia Brasileira de Letras, onde ocupa a cadeira 32 desde 2014, e curte os netos. “Tenho uma vida muito feliz e de muita energia”.
Marisa Loures – Cinquenta anos depois, que balanço você faz de 1968?
Zuenir Ventura – Esse ano é misterioso, porque, 50 anos depois, ainda está se falando dele. Eu me lembro que tinha um sociólogo francês que dizia o seguinte: “Vão ser preciso muitos anos para entender o que aconteceu hoje”. E, 50 anos depois, a gente ainda está procurando entender. Uns dizem que foi um surto, foi um êxtase da história. Outros dizem que foi um milagre. O fato é que é misterioso ter acontecido o que aconteceu em vários países, em vários sistemas ao mesmo tempo. Os jovens se rebelando, e não tinha a internet, não tinha a globalização. É um mistério. Por que aquilo aconteceu naquele momento, sem esta conexão que há hoje? Costumo dizer que 68 não é um ano, é um personagem que teme em não sair de cena.
“Outro dia, eu estava fazendo uma palestra, e um jovem falou: ‘hoje eu vejo a mesma coisa, tem a censura do mercado, tem não sei o quê. Qual a diferença?’ Respondi: ‘a diferença é que, se você estivesse falando isso tudo que está falando agora em 1968, você sairia daqui preso, e não sai’. Não é só a democracia, não é só é a liberdade. É a igualdade. Mas é importante ter liberdade, esse é o primeiro passo para você poder gritar, reclamar, criticar, poder exercer seu direito de expressão.”
– E 1968 continua sendo um ano que não acabou?
– Pelo fato de estarmos discutindo até hoje esse ano, acho que sim. Neste ano, eu tive a impressão de que eu estava vivendo em 68, porque fiz tantas palestras pelo Brasil afora que eu dizia: “mas, gente, por que vocês estão falando de 68?” Tive a sensação de estar vivendo maio de 68 e não 2018. É um ano que deixou legados. Reputo quatro movimentos sociais que nasceram e se solidificaram em 1698: movimento dos negros, dos homossexuais, o movimento feminista e o ambiental. Esses quatro movimentos, até hoje, são importantes. Houve avanços, mesmo com todos os problemas que a gente tem. Tem o feminicídio, tem as mulheres ganhando menos, mas você tem, por exemplo, o Supremo, que, até pouco tempo, foi presidido por uma mulher. Quase todas as nossas principais instituições são dirigidas por mulheres. Os gays, apesar de serem perseguidos, apesar de hoje ainda ter morte, há casamentos legítimos. Naquela época, imagine. Agora, há uma herança maldita, que são as drogas. O combate às drogas ainda é pior do que as drogas, porque mata mais do que elas. Tentar acabar com as drogas através da violência, através das armas, realmente, não dá em nada. Não é dessa maneira que se combate as drogas. O combate às drogas, hoje, é muito mais pernicioso do que as drogas em si, porque tem tráfico. Essa é a herança maldita. Fora isso, houve avanços. Outro dia, eu estava fazendo uma palestra, e um jovem falou: “hoje eu vejo a mesma coisa, tem a censura do mercado, tem não sei o quê. Qual a diferença?” Respondi: “a diferença é que, se você estivesse falando isso tudo que está falando agora em 1968, você sairia daqui preso, e não sai”. Não é só a democracia, não é só é a liberdade. É a igualdade. Mas é importante ter liberdade, esse é o primeiro passo para você poder gritar, reclamar, criticar, poder exercer seu direito de expressão.
– O Brasil acabou de eleger um novo presidente. Ele ganhou a aprovação de milhões de brasileiros, mas também a reprovação de outros milhões. Estes últimos acreditam que estamos vivendo um retrocesso no campo político, sentem medo da volta da ditadura. O senhor viveu esse período da nossa história, inclusive foi preso logo depois do AI-5. O medo é legítimo?
– Acho que é legítimo por um lado, porque há razões para você temer esses elogios à ditadura. O presidente eleito já fez declarações horrorosas, mas aí ele volta atrás. O filho dele acha que, para fechar o congresso, basta um soldado e um cabo, acha que deveria metralhar. Mas há uma reação muito grande. Ele vai ter que se curvar à democracia. Ele fez declarações preocupantes. Essa campanha foi, realmente, de baixo nível. O que ele fez de ameaças físicas de que vai matar…, e a plataforma dele foi toda de recuos em relação à democracia. Acho que a pessoa tem direito de ser de direita e de esquerda. A questão é que você tem que ser subordinado às regras da democracia. Na mesa onde ele fez sua primeira declaração, tinha o livro do Churchill (Winston Churchill, político conservador, ex-primeiro ministro do Reino Unido durante a 2ª Guerra Mundial). Ele deveria se lembrar de que Churchill disse o seguinte: “A democracia é o pior dos sistemas, com exceção dos outros”. Não há nada melhor do que a democracia. Ela é a convivência dos contrários. Tudo bem, eles ganharam, acho que tem que se curvar às regras da democracia. Agora, não pode confundir isso com o cancelamento das conquistas democráticas. Isso é impossível. Acho que a sociedade avançou, mesmo com todos os recuos aparentes. O temor é dessa ameaças, mas não acho que isso vai ter consequências perniciosas não. As instituições brasileiras estão muito sólidas.
“O grande equívoco é achar que você vai acabar com a violência dando tiro. Essa é outra questão que me preocupa não só por causa do novo presidente, mas também por causa do novo governador do Rio. Acham que, com fusil, vão resolver tudo.”
– Quando conversamos há uns anos sobre seu livro “Cidade partida”, você disse que, ainda que estivéssemos longe de acabar com a cidade partida, pela primeira vez a gente via, no Rio de Janeiro, uma política de segurança na direção certa. Como você vê o Rio de Janeiro depois da intervenção federal?
– O grande equívoco é achar que você vai acabar com a violência dando tiro. Essa é outra questão que me preocupa não só por causa do novo presidente, mas também por causa do novo governador do Rio. Acham que, com fuzil, vão resolver tudo. O governador já declarou que, quando encontrar alguém com fuzil na favela, é para dar um tiro. Não é assim desse jeito. Violência não se combate com violência. Tem que ter uma política inteligente, porque o crime é muito inteligente. É a inteligência para o mal, basta dizer que eles tomam conta de setores, de regiões. O Rio de Janeiro está, de certa maneira, ameaçado, dominado pelo crime. Acho que essa intervenção ainda não produziu efeitos. Quero acreditar que vai ser melhor, que eles vão descobrir quem matou Marielle (Marielle Franco), embora já tenha meses que isso aconteceu, e eles não conseguem. Eu sou muito otimista. Costumo dizer que meu DNA dizia que eu seria careca e otimista, e eu sou as duas coisas. Ainda dou um crédito a essa intervenção, mas até agora não há do que se vangloriar. O Rio ainda é uma cidade ameaçada.
– A cadeira 32 da Academia Brasileira de Letras é sua desde 2014. Como é ser um imortal?
– A gente brinca dizendo que é imortal, porque não tem onde cair morto. A academia foi uma grande revelação para mim. Eu resisti, custei a ir para lá. Estive três ou quatro vezes para ir e, na última hora, abria mão para outros colegas. Hoje, acho fundamental. O Ferreira Gullar, coitado, morreu dois anos depois. Ele resistiu muito mais do que eu a ir para a academia e depois me disse pouco antes de morrer: “Zuenir, a academia é hoje meu programa cultural no Rio de Janeiro”. Ele adorava a academia, era o primeiro a chegar para o chá. De fora, a gente tem a imagem de que é um lugar chato, careta, com os velhinhos lá tomando chá. Não é nada disso, tem humor, tem crítica, tem inteligência, tem figuras maravilhosas. Vou a todas as sessões. Só não vou quando não posso. É um grande programa cultural.
– Continua produzindo ativamente aos 87 anos?
– Procuro tentar. Estou ativo ainda. Isso é uma boa notícia para mim, sobretudo, porque, apesar dos meus 87 anos, estou muito bem de saúde. Digo o seguinte: “meu tempo é hoje”, frase do Paulinho da Viola. Não fico olhando para trás. Hoje, tenho a sorte de ter boa saúde, de ter uma família incrível, de ter netos. Os dois netos que tenho são minhas paixões. Se eu soubesse que ser avô era tão bom, teria pulado etapa. Então, não tenho porque reclamar. Só não quero sofrer. A morte não me assusta, porque ela é inevitável. Não quero é ficar sofrendo em cima da cama. Mas acho que vai demorar. Meu pai morreu com 98 anos, e acredito que vou chegar até lá. Acordo cedo, durmo tarde. Vou andar, ler os jornais, escrever o que tenho que escrever. Depois do almoço, apago e fico umas duas horas dormindo. Depois acordo e vou fazer o que tive que fazer. Tenho uma vida muito feliz, de muita energia.
Sala de Leitura com Zuenir Ventura – Quinta-feira, às 9h40, na Rádio CBN Juiz de Fora (AM 1010).
Grandes Escritores
Com Zuenir Ventura e Nelson Motta
30 de outubro, às 19h30, noi Cine-Theatro Central.
A entrada é gratuita. Os convites devem ser retirados na portaria do teatro.
“1968: O ano que não terminou”
Autor: Zuenir Ventura
Editora: Objetiva (328 páginas)
Trecho de “1968: O ano que não terminou”
A nossa história começa com um réveillon e termina com algo parecido a uma
ressaca — ressaca de uma geração e de uma época. Entre os dois, o Brasil e o
mundo viveram um tempo apaixonado e apaixonante. É possível que 1968
não seja, como querem alguns de seus hagiólogos, o ano zero de uma nova
modernidade, embora os estudantes franceses já tivessem avisado, na época,
que era apenas o começo: “Ce n’est q’un début”, advertiam os muros de Paris.
O sociólogo Edgar Morin, que acompanhou o Maio francês e em seguida
veio ver nossas passeatas, falou em “êxtase da História”. Seu colega mais
velho, Raymond Aron, assustou-se com a “demência coletiva”, para mais tarde
admitir que aquele “psicodrama coletivo” — outra de suas classificações pejorativas
— mudara a França.
Na mesma época, em outro país, a Alemanha, o igualmente célebre filósofo
Jürgen Habermas chamou os jovens iracundos de 68 de “fascistas de
esquerda”, mas depois reconheceu que toda a atualidade cultural, da ecologia
ao individualismo, começou a brotar naquele ano.
A morte não deixou que o grande Pier Paolo Pasolini pudesse rever, vinte
anos depois, o seu ódio imediato aos “pequeno-burgueses filhinhos de papai
e do poder”. Num enorme poema-manifesto, o cineasta comunista registrara,
para escândalo geral da época: “Odeio vocês tanto quanto odeio seus pais.”