Curadora reflete sobre os novos caminhos da arte contemporânea

‘Não experimentamos mais o mundo em linha reta’, diz Marisa Flórido César, curadora da mostra “Aos fios entreguei o horizonte”, em cartaz em JF até este sábado


Por Mauro Morais

09/10/2018 às 07h00- Atualizada 09/10/2018 às 07h19

Crítica, curadora e pesquisadora, Marisa defende que a leitura da arte é outra nos dias de hoje: “Não termina a arte, nem termina a história. O que termina é determinada moldura” (Foto: Olavo Prazeres)

Por detrás das conexões, estão outras relações, numa rede entre o visível e o invisível. O mundo, um entroncamento de contatos, abandonou as linearidades rumo ao complexo. A arte, como sempre, fez-se reflexo. Em “Aos fios entreguei o horizonte”, exposição que segue até o próximo sábado, 13, em cartaz na Hiato – Ambiente de Arte, o emaranhado de elos está expresso na curadoria aberta e inventiva assinada por Marisa Flórido César.

Sem grandes regramentos, a críti09ca de arte e professora do Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) sugeriu a quatro artistas que produzissem trabalhos a partir da palavra “horizonte”. Cada um dos quatro sugeriram outras palavras a outros quatro artistas. Seguindo um fluxo de repasse de novas palavras, 20 artistas foram mobilizados para a mostra que confirma a tendência de vínculos indiretos.

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Não apenas os grupos de cinco artistas apresentam regiões de comunicação. As influências se fazem sem que houvesse um toque anterior. A isso o senso comum costuma nomear como clima, que paira no ar. Cientificamente, Marisa percebe como sendo uma característica da contemporaneidade, a mesma a contribuir para justificar a desestabilização na qual vive a história da arte. O presente, sugere ela, não trabalha com zona de conforto.

E se até um passado recente o ponto de partida estava no renascimento, o presente questiona o lugar anterior das imagens antropológicas. Segundo Marisa, em entrevista à Tribuna, o espaço do infinito, a distância do incomensurável, com as redes, ganhou novas medidas. Para a reconhecida curadora carioca, autora de “Nós, o outro, o distante: na arte contemporânea brasileira” (Editora Circuito) e crítica de “O Globo” de 2010 a 2013, o horizonte, agora, é outro.

Tribuna – A curadoria da Bienal de São Paulo este ano convidou alguns artistas a estabelecerem suas próprias curadorias. Na exposição “Aos fios entreguei o horizonte”, você também compartilha essa experiência. Como entende o papel do curador hoje?
Marisa Flórido César – O curador aparece em cena quando o crítico de arte, uma figura paradigmática, entra em crise. Mas o que está em crise não é só isso, é um tipo de narrativa sobre a história da arte, porque entendeu-se que não havia apenas uma via que desse conta do que é a arte, que não era só pintura, ou escultura, e essas categorias não estavam separadas. Quando a arte começa a expandir suas fronteiras, não só de suportes, mas em relação ao mundo, à escrita, aos lugares, aos tempos, aos afetos, aos poderes, surge o curador, que como o crítico é uma figura de mediação. Não termos só uma narrativa significa dizer que não existe uma obra fechada em si mesma, ela aparece em relação à vizinhança na qual está.

Além do crítico, do curador, o espectador cria outra leitura…
Ele sempre cria outra leitura. O que é complicado na relação da curadoria é que os curadores se transformaram em figuras muito poderosas. O sistema de arte foi ficando cada vez mais espetacular. As bienais parecem feiras, as feiras parecem bienais, e a relação com o mercado diz respeito à visibilidade, à exposição. O curador, então, virou uma figura de poder que não legitima apenas um discurso sobre a arte, mas quem entra nessa visibilidade, qual artista merece estar em exposição. Em “Aos fios entreguei o horizonte” eu não queria isso, gosto de processos abertos, que vão me surpreendendo. Eu não queria vir com um discurso, uma coisa pronta, e inserir obras nesse discurso. O que fiz foi um jogo, e o que foi acontecendo me surpreendeu o tempo inteiro. Sou, aqui, a grande espectadora, a primeira, antes de os artistas verem entre eles, percebo as relações que são criadas. E isso é algo muito sensível e me estimula.

Se esse crítico está em crise, qual o lugar dele hoje?
Está em crise a figura do grande crítico de arte, e essa cultura ao redor dele, mas isso não significa que não se escreva mais sobre a arte. Hoje se escreve muito, e os discursos se contradizem. São várias as leituras. E não acho isso ruim. É bom. Aquela figura do crítico, que faz juízo negativo, está em crise, enquanto agora está aquele que coloca questões diante de várias vozes que falam.

Isso reforça a ideia de que a arte contemporânea é um recorte complexo?
Não só a brasileira, mas a do mundo. A arte contemporânea é complexa no sentido de questionar o que é a arte, qual é o sentido da arte, quais relações se colocam, em que geografias se colocam, em que tempo, em que mundo e em como fazer a história. Qual lugar a arte ocupa? O que ela coloca? Qual o problema? Em que momento a arte é capaz de resistir àquilo que nos engole? Não há respostas prontas para isso.

Como tenta responder a isso como curadora?
Nessa exposição, por exemplo, temos uma mostra de vários tipos de trabalho, que indicam como é plural a arte contemporânea brasileira. Ela discute questões prementes, como a selfie, as travessias e a importância da ficção dentro da arte. A ficção não é criar um mundo ilusório, mas imaginar outros mundos possíveis. E a arte, no fundo, tem esse papel de liberar a nossa potência imaginante, de imaginar outros possíveis, por isso é tão importante.

E isso está expresso na própria exposição quando mostra que existe uma eterna criação…
“Aos fios entreguei o horizonte” simboliza o porvir. Os fios são as pessoas, que vão tecendo, coletivamente, o futuro. A história está sendo tecida e modificada o tempo inteiro. Não há mais aquele ponto de fuga da tradição pictórica, que diz que o horizonte é a linha que coloca na altura do olhar. Isso tem relação com o homem que se colocou em pé, um “bípede sem plumas” como dizia Platão, e submeteu o mundo à sua altura e ao seu olhar, o que é o antropocentrismo. Agora inverto, dizendo que ao horizonte entrego os fios, porque são muitos olhos, mãos, textos, palavras, que tecem uma trama.

São muitos os caminhos, mas existem alguns apontamentos, como esse que você disse acerca da ficção?
É uma percepção particular minha: nesses tempos em que o desejo é sequestrado, sentimos impotência e melancolia e depositamos a nossa frustração no outro. Tudo rouba a nossa imaginação. Que tempo a gente tem nesse eterno agora das redes? Somos assolados por informações, que não necessariamente são verdadeiras. Boa parte do que nos chega hoje são mentiras que, repetidas tantas vezes, tornam-se verdade. Que possibilidade você tem, asfixiado por isso o tempo inteiro, de imaginar outros caminhos? O mundo está passando por uma crise de sentido e repertórios político e ético, por isso não sabemos para onde vamos. Ou retomamos antigas figuras totalitárias que nos dão certa apaziguada achando que vão nos salvar ou pensamos o mundo de forma mais aberta e horizontal, o que também é uma utopia. A questão é pensar o mundo e quais relações podemos estabelecer com ele e entre nós. É nisso que a arte está interessada.

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Essa ideia de rede é muito presente em nosso cotidiano. Algumas delas são perceptíveis, outras imperceptíveis, como a que você demonstra na exposição. Essa questão do mundo em rede te inquieta?
O que está acontecendo há várias décadas é que não experimentamos mais o mundo em linha reta, com uma história com finalidade comum. Antes mesmo desse boom das redes sociais, experimentamos o mundo em rede. E o espaço e o tempo se alteram. O tempo vai sendo cada vez mais comprimido. O tempo das redes, do imediato, do eterno agora. Ao mesmo tempo, perdemos o tempo, e ele é rizomático, abrindo-se a várias temporalidades.

E qual é a relação que a arte estabelece com a política?
A arte talvez seja uma ilustração da política, tem sua própria forma de fazer política que é uma partilha do comum. Se sou artista e o que chamo de arte endereço a você, você pode aceitar como arte ou não. Aí temos uma questão ética e política. Aquilo é ou não é arte? Ultrapassa o juízo estético. O que te faz aceitar ou não a arte? No fundo, a arte coloca em questão, no mínimo, nós dois e, no máximo, todos nós.

Essa é a ideia do fim da arte? Estamos após o fim da arte?
O que se esgota são algumas formas de leitura da arte, determinados enquadres. Não termina a arte, nem termina a história. O que termina é determinada moldura. Também não acho que a arte tenha se tornado só filosofia. Ela se torna outra coisa e vai se abrindo. O que está em embate no mundo é uma historiografia e uma noção de arte que é ocidental, que tem atrelada a ela a ideia de universalidade, de temporalidade. Agora temos outros mundos para tecer isso.

AOS FIOS ENTREGUEI O HORIZONTE
Visitação de segunda a sexta, das 9h às 12h e das 14h às 18h, aos sábados, das 9h ás 13h, até 13 de outubro, na Hiato – Ambiente de Arte (Rua Coronel Barros 38 – São Mateus)

Tópicos: literatura

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