Pitico escreve crônicas sobre o envelhecimento e as miudezas da vida
Início dos anos 1980. Pitico está em casa, almoçando, quando chega pela janela uma correspondência inesperada. O remetente? A mineira Adélia Prado. Já se vão mais de 30 anos, e foi de olhos fechados, como se quisesse reviver, em detalhes, aqueles instantes, que ele me conta esse episódio. Gravávamos para o Sala de Leitura, e o assunto eram as referências literárias de suas reflexões, que agora estão reunidas no livro “Esse é o meu lugar: crônicas sobre o envelhecimento, cidades e vida” (Bartlebee, 83 páginas).
“É o meu lugar e também o lugar de todas as pessoas. Por mais que a nossa educação e a nossa cultura não favoreçam a percepção de que vamos envelhecer, ou de que a velhice faz parte do nosso projeto de vida, tenho expectativa de que, através dessas crônicas, eu possa sensibilizar, primeiro, o leitor, o nosso ouvinte, das quintas-feiras, e falar desse tema, que é árido, que é difícil. Não é fácil mesmo envelhecer. Que a gente possa se reeducar para essa realidade. A cidade já é uma cidade envelhecida, o Brasil é envelhecido. Como diria nosso poeta Arnaldo Antunes, ‘não há nada mais moderno do que envelhecer’. Minha expectativa é a de buscar ainda mais diálogo com o leitor, com a cidade”, conta o assistente social e gerontólogo José Anísio Pitico da Silva.
As 30 crônicas da publicação foram escritas entre 2006 e 2016. Boa parte delas já foi ouvida pelos ouvintes que o acompanham, semanalmente, na coluna “Melhor idade”, da Rádio CBN Juiz de Fora, ou lida na seção de leitores da Tribuna de Minas. São textos em que Pitico escreve sobre o envelhecimento humano, a (s) cidade (s) e o cotidiano prosaico da vida. “Acho que falo melhor escrevendo do que, propriamente, verbalizando. No rádio, pego uma palavra da crônica, e aquela palavra me liberta para eu fazer várias conexões, ligadas ao assunto do envelhecimento. São riquezas muito profundas, diferentes. O tema me apaixona, e ele me leva muito longe, porque a crônica me libera, me dá informalidade.”
Marisa Loures – Antes de gravar, falávamos sobre suas referências literárias, que são, em sua maioria, femininas…
Pitico – Isso, no Brasil, com a internet, vira clichê. Às vezes colocam coisas que as pessoas não falam. Acho que a Clarice (Lispector) passou por uma fase de estar muito na moda, o que me dá certo ciúme, porque eu queria a Clarice só para mim. Um pouco mais velho, tenho tido vontade de reler alguns livros dela.
– O que os textos da Clarice Lispector te despertam?
– Acho que essa coisa do cotidiano e do amor, de que amor não tem capa de ouro. O amor é humano, independentemente, de condição social. E a condição que a Clarice coloca nos personagens é de uma simplicidade, mas de uma profundidade humana, de desmontar preconceitos sobre o que é amar. Amar é a comunicação das pessoas. Às vezes, me fogem as palavras. Não sou um estudioso da Clarice, sou mais um leitor dela, e ela me diz muito no sentimento. Aí descubro mais à frente a Adélia Prado, naquele poema-símbolo: “Minha mãe achava o estudo a coisa mais fina do mundo.” Mas ela fala: “não, a coisa melhor do mundo é o sentimento”. Em 1982, eu estava almoçando na sala, veio pela janela aquele aerograma, olho o remetente: “Rua Ceará, 139- Divinópolis. Adélia Prado.” Quando abri, era Adélia Prado respondendo uma carta minha e agradecendo “por todas as coisas de um menino que você me mandou.” É claro que essa carta ganhou um quadro. Sou assistente social, minha profissão é, eminentemente, composta por pessoas do gênero feminino. Trabalho com o envelhecimento, que, majoritariamente, é o mundo das mulheres. Então, acho que tenho, talvez, uma afinidade com esse lado feminino. A realidade é que essas singelezas e gentilezas, estão se perdendo, mas eu as prezo muito, e acho que essas autoras colocam muito bem isto: as relações do cotidiano. Acho que o mundo da velhice me cabe profundamente como um ser carente de afeto, necessitado de amor, de proteção. O meu lado político no sentido de que a gente precisa politizar o envelhecimento, do ponto de vista público, do ponto de vista social.
Seu livro começa com um puxão de orelha. Você fala que a velhice é invisível aos contemporâneos e pergunta: “Quem vai cuidar dos nossos idosos dependentes?” Era uma crônica de 2015, que dizia que o Estatuto do Idoso tinha completado 12 anos, mas nada, efetivamente, havia mudado até aquela data. De lá para cá, houve melhoria na vida dos idosos de Juiz de Fora?
– Penso que, de modo geral, os idosos estão sendo mais vistos. Acho que falta mudar a forma como a sociedade os vê. Em Juiz de Fora, avançamos bem, mas me parece que ficamos no que foi feito, já do ponto de vista do belo trabalho do pró-idoso, agora mais recentemente com a coordenação de políticas públicas para pessoas idosas que dá novo fôlego na implementação das políticas. O mundo da velhice é um mundo amplo, complexo, é um mar de situações. A gente ainda não chegou, com certeza, naqueles idosos mais dependentes. Aqueles acamados, que estão na zona rural, nas ruas, que estão nos abrigos e nos asilos. Esse perfil ainda passa ao largo no sentido da pouca atenção ou vínculo social que a cidade deveria prestar a essas pessoas. Quando lanço a pergunta: quem vai cuidar dos idosos dependentes? É porque eles estão à mercê mesmo. As famílias não dão conta, não é fácil cuidar de uma pessoa com Alzheimer. Há limitações físicas, psicológicas, econômicas, a medicação é cara. Ainda não temos equipamentos públicos, na cidade, para fazer frente a essas necessidades desses tipos de idosos. Os idosos que estão bem, estão bem, muito obrigado. São autônomos, independentes, dançam, se relacionam, conquistam, viajam. Mas e os outros, como estão? Eles estão à mercê de uma atenção pública, de uma atenção maior da cidade.
– Na orelha, o Marcelo Juliane (âncora da CBN Juiz de Fora), diz que, ao ler seu livro, chega à conclusão de que velhice não é sinônimo de incapacidade e que, se está sendo, é porque não estamos tratando o assunto de forma adequada. Ele diz que, ao final da obra, vamos querer mudar nosso comportamento. Esse é o espírito do seu livro?
– Na nossa convivência semanal, toda quinta-feira na coluna, o Marcelo conseguiu, de fato, levantar essas questões. Acho que ele dá também um puxão de orelha bacana na gente, ao colocar que a velhice pode ser uma fase da nossa vida produtiva, que nós precisamos rever nossos posicionamentos. Nossos posicionamentos colocam o envelhecimento como uma fase indesejável.
– Pode-se dizer que, às vezes, o próprio idoso não tem consciência de que ele é produtivo?
– Ele internaliza esses conceitos de que não pode, de que já fez tudo, de que tem mais é que ficar em casa. É toda uma cultura que favorece essa passividade, esse estar de lado do dia a dia da sociedade, da família, da participação social ou até mesmo de seus projetos pessoais. O importante na nossa vida é ter metas, por pequenas que sejam. Sonhar dá uma esperança de dias melhores. Sei lá, acho que a partir de agora vou cuidar de uma horta, ou viajar um pouco mais, vou entrar para o mundo da internet, coisas assim. Não tenho dúvida nenhuma de que ter essa possibilidade dá mais sentido ao envelhecimento. Reconheço que não é fácil envelhecer num país como o nosso, as questões econômicas não são nada favoráveis, a violência e o preconceito ainda são muito fortes, mas a gente precisa, na medida do possível, resistir. E eu, minimamente, dou um pouco dessa contribuição, até porque, daqui a pouco, quero estar lá com mais respeito, dignidade, com mais civilidade nas nossas relações. Acredito na mudança e acredito no potencial de transformação social das pessoas idosas.
– De onde sai material para suas crônicas?
– Tiro da observação, do café que tomo na padaria todo dia, de como a pessoa me atende, do que vejo, do que leio. Fica tudo grudado em mim. Acho que tem que estar atento. Tenho mania de anotar o que me chama atenção no trânsito, na cidade, no dia a dia. Agora mesmo, uma senhora me ligou por conta do novo calçadão que vai ter na Rua Marechal. Ela mora naqueles prédios, e tem senhoras de cem anos ali que são acamadas. “E aí, como vai fazer para estacionar, para a ambulância chegar até lá? Vai ter que andar mais distante?” Quer dizer, isso tem uma questão objetiva, mas essa objetividade me inspira a avançar um pouco mais, a me colocar no lugar dela. Já observou como que as pessoas idosas gostam de uma janela? Fiz uma crônica sobre isso: “A senhora na janela”. Observo muito, então eu preciso olhar par o alto, olhar para o lado, olhar para o chão. Nesse olhar circular pode está a riqueza de várias crônicas.
“Esse é o meu lugar: crônicas sobre o envelhecimento, cidades e vida”
Autor: José Anísio Pitico da Silva
Editora: Bartlebee, 83 páginas